Durante o Ancien Règime, período de dois séculos que antecedeu a Revolução Francesa de 1789, vigorava um estranho modo de distribuição de cargos públicos administrativos, judiciários ou financeiros: os reis os vendiam aos interessados em pagar-lhes bons preços. O sistema resolvia vários problemas: a venda ajudava a sustentar a realeza, garantia a prestação de alguns serviços ao povo e, ao mesmo tempo, conquistava lealdades e aumentava o prestígio do poder real. Eram os chamados "cargos venais", uma antecipação do que hoje conhecemos como "terceirização".
Visto na perspectiva de alguns séculos depois e após desenvolvidas formas modernas de governar, o sistema nos parece hoje de todo imoral e condenável mas, ressalve-se, talvez fosse então a maneira mais viável de o Estado se fazer presente onde o povo dele precisasse. Desde então, porém, a partir principalmente do modelo teórico de organização do Estado e de sua burocracia desenvolvido pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1926), já não se concebem sequer resquícios do passado anterior à Revolução Francesa.
Modernamente, outros valores se sobrepõem a práticas que lembrem qualquer tipo de patrimonialismo, qualquer confusão entre o público e o privado. A ética, a impessoalidade e o mérito são critérios absolutos que devem conduzir a boa e saudável administração pública. Entretanto, a sucessão de episódios escandalosos que frequentemente se transformam em manchetes chocantes nos faz lembrar que no Brasil ainda sobrevivem os "cargos venais".
Pegue-se o caso que tem como figura central a ex-chefe do gabinete paulistano da Presidência da República: Rosemary Noronha, sabe-se lá a que preço pessoal, "comprou" a estratégica posição que ocupava para "vender" mercadorias de que só o Estado poderia dispor. Sob a suposta proteção do "rei", indicava e conseguia nomeações para altos cargos públicos para apaniguados que, por sua vez, a remuneravam.
Foi o caso dos irmãos Vieira: eles estavam certos de que o investimento que faziam em Rosemary, pagando-lhe inclusive cirurgias plásticas, teria retorno decuplicado na medida em que, com os "cargos venais" que conquistaram, podiam também cobrar alto pelas facilidades que ofereciam. Por exemplo, pareceres técnicos convenientes para empresários ávidos em avançar sobre bens públicos.
Por ser tão recente e por estar tão perto do círculo mais íntimo do poder, o caso de Rosemary Noronha se tornou imediatamente emblemático na história desta pobre República. Entretanto, não é o único. Não é necessário grande esforço de memória para lembrar que semelhante prática envolveu também Erenice Guerra, que, no governo Lula (sempre ele!), chegou à chefia da Casa Civil, cargo que lhe propiciou abrir sendas de bons negócios para marido e filhos.
Ou, no pior dos casos, aquele que envolveu Lulinha, filho do presidente que mal iniciava o primeiro mandato, e que de tratador de animais num zoológico tornou-se dono de uma microempresa de informática, especializada em jogos eletrônicos. Esta empresa valorizou-se repentinamente: foi vendida por milhões a uma operadora de telefonia que, por sua vez, logo depois conseguiu autorização para fundir-se a uma concorrente operação vedada pelos regulamentos oficiais. Esclareça-se que não era o filho o detentor do cargo com prerrogativa ou influência para conceder tal favor.
Com este pequeno elenco de casos exemplares, parece-nos que ainda vivemos no Ancien Règime com seus cargos venais.
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