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Opinião do dia 1

O regime fardado

O "regime fardado" – como gosta de chamar certo escriba cá da terra – continua a ser acusado de ser o responsável por todas as nossas desgraças presentes, passadas e futuras, inclusive por este vendaval de corrupção que se abateu sobre o país. Mas alguns também ensaiam tímidas comparações, como há pouco ocorreu quando da morte do general Otávio Medeiros, chefe do SNI no governo Figueiredo, falecido em situação de quase indigência, e alguém lembrou que, apesar de terem governado ou mandado em um regime autoritário, os generais morrem pobres.

Um dos mais cáusticos críticos da "ditadura militar" foi Elio Gaspari em seus quatro recentes livros. No segundo deles – A Ditadura Escancarada – as peripécias da escolha do substituto de Costa e Silva constituem um alentado capítulo de credibilidade muito discutível já que se baseia em algumas fontes suspeitíssimas, como Jayme Portella de Mello – uma espécie de "golbery" do "seu Artur" –, o despeitado panfletário Carlos Lacerda e o jornalista Carlos Chagas, então servidor da ditadura, que, apeado da sinecura que arranjara, tornou-se um feroz e ressentido detrator dos militares. Hoje, sabe-se lá porque, mudou outra vez de lado. Outras surpreendentes, como a do então ministro Delfim Netto, em um suposto depoimento de maio de 1988. Surpresa, pelo menos, para quem nunca acreditou no que transpirou do que dizia o Relatório Saraiva.

As demonstrações de apego ao poder, as ambições, as vaidades e o entrechoque de grupos ali mostrados são parte de um quadro que tem certa credibilidade, mesmo para quem não se ceve na peçonha que o autor destila ao descrever certos acontecimentos. Tais mazelas eram parte de um sistema de poder que sempre preocupara Castello Branco, mas que já eram sinais claros da perda de rumo que faria do movimento de 1964 mais uma revolução perdida, como profetizara o general Ernesto Geisel, ao saber que o substituto de Castello seria Costa e Silva. Mas, apesar e independentemente disso, enquanto a "tigrada" continuava fiel ao cumprimento de sua missão de impedir a comunização do país, o "concílio dos generais" acabaria por escolher para assumir o posto na "troca da guarda" um de seus pares, capaz das demonstrações de autoridade, simplicidade, modéstia, desprendimento e integridade moral que mesmo um autor tendencioso e parcial, como Elio Gaspari, foi incapaz de esconder. Quantos presidentes neste país poderiam receber os elogios que o autor dedica ao general Médici, registrados à página 133 do citado livro? Eis o que escreveu o autor: "Presidiu o país em silêncio, lendo discursos escritos pelos outros, sem confraternizações sociais, implacável com mexericos. Passou pela vida pública com escrupulosa honorabilidade pessoal. Da Presidência tirou o salário de Cr$ 3.439,98 líquidos por mês (equivalente a 724 dólares) e nada mais. Adiou um aumento da carne para vender na baixa os bois de sua estância e desviou o traçado de uma estrada para que ela não lhe valorizasse as terras. Sua mulher decorou a granja oficial do Riacho Fundo com móveis usados recolhidos nos depósitos do funcionalismo de Brasília". No terceiro volume da mesma obra – A Ditadura Derrotada – Elio Gaspari escreveu:

"A ditadura estava no seu oitavo ano, no terceiro general. Médici cavalgava popularidade, progresso e desempenho. Uma pesquisa do Ibope realizada em julho de 1971 atribuíra-lhe 82% de aprovação. Em 1972, a economia cresceria 11,9%, a maior taxa de todos os tempos. Era o quinto ano consecutivo de crescimento superior a 9%. A renda per capita dos brasileiros aumentara 50%. Pela primeira vez na história, as exportações de produtos industrializados ultrapassaram 1 bilhão de dólares. Duplicara a produção de aço e o consumo de energia, triplicara a de veículos, quadruplicara a de navios. A Bolsa de Valores do Rio de Janeiro tivera em agosto uma rentabilidade de 9,4%. Vivia-se um regime de pleno emprego. No eixo Rio–São Paulo, executivos ganhavam mais que seus similares americanos ou europeus. Kombis das empresas de construção civil recrutavam mão-de-obra no ABC paulista com alto-falantes oferecendo bons salários e conforto nos alojamentos. Um metalúrgico parcimonioso ganhava o bastante para comprar um Fusca novo. Em apenas dois anos, os brasileiros com automóvel passaram de 9% para 12% da população e as casas com televisão de 24% para 34%. O secretário do Tesouro americano, John Connally, dissera que "os EUA bem poderiam olhar para o exemplo brasileiro, de modo a pôr em ordem a sua economia". Está lá, nas páginas 26 e 27 do livro de Elio Gaspari, para quem quiser conferir e fazer suas comparações, registrado por um escriba acima de qualquer suspeita de ser a favor do "regime fardado" ou saudoso "dos tempos dos coturnos".

Raymundo Negrão Torres é general reformado, acadêmico e membro do IHGP e do CLP. Autor do livro "O fascínio dos 'anos de chumbo'".

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