RIO O centenário do nascimento do comandante Ernani do Amaral Peixoto, que amanhã se comemora, ganha uma significação que vai além das várias homenagens que se sucedem por todo o dia: no inevitável contraste de tempos separados por décadas cristaliza-se o consenso entre os sobreviventes que o conheceram, dos que recolheram o testemunho de amigos, correligionários e especialmente de adversários de uma figura incomum na aparente simplicidade de homem público rigorosamente exemplar.
Presto o meu testemunho. Amparado na pesquisa da memória, que me levou a conferir datas e episódios no seu depoimento recolhido em 72 horas de entrevistas gravadas, com interrupções ao longo de sete anos, pela equipe de especialistas do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas Aspásia Camargo, Lúcia Hippolito, Maria Celina Soares DAraújo e Dora Rocha Flaksman reunidas na edição de 1986 de Artes da Política, da Editora Nova Fronteira. O texto, embalado pela emoção, fisgou-me na releitura, com quase duas décadas de intervalo, das 573 páginas de um dos mais importantes, precisos e esclarecedores documentos do longo período que começa com a Revolução de 30, percorre a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, atravessa a redemocratização de 46 até a recaída ditatorial de quase 21 anos dos cinco generais-presidente e a nova onda de esperanças de 85, com a eleição indireta de Tancredo Neves, o presidente que morreu antes de tomar posse, até o governo do presidente José Sarney. Amaral Peixoto morreu no dia 12 de março de l989, poupado do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso e dos dois anos e meio da morte da esperança na crise dos escândalos da corrupção do governo do presidente Lula.
Memorialista excepcional, começa sua aula magna nos curiosos enredos, entre intrigas e o reconhecimento da seriedade e do espírito público dos personagens que desfilam pela política fluminense, antes mesmo da sua nomeação pelo futuro sogro Getúlio Vargas, como interventor federal do estado do Rio de Janeiro.
A franqueza e a segurança, com que reconhece erros e acertos, disseca cada episódio com abundância de detalhes fecha nas análises com implacável objetividade. Nem todos concordarão com as suas opiniões, mas aprenderão muito do que não sabem com a exposição urdida por quem conhecia o chão em que pisou nas duas bandas do jogo do poder. Pois a ronda dos preconceitos, a carga das restrições aos vinculados ao Estado Novo espalhou calhaus da desconfiança da minha geração de repórteres políticos, forjada no ódio à censura e ao embalo dos sonhos da liberdade, no atalho que nos levaria a uma aproximação em etapas. Na fase dourada dos maiores oradores do século dos grandes debates parlamentares, o deputado e senador Amaral Peixoto, com sua conversa pausada e contida, não chegava a provocar entusiasmo e arrancar aplausos nas suas raras e breves presenças na tribuna.
Mas as habilidades e manhas de um virtuose na articulação de esquemas de entendimento, das saídas inesperadas e imprevistas para a crise que parecia insolúvel, a gentileza nata no tratamento respeitoso com amigos e adversários foram superando barreiras: o comandante foi um político honrado, de mãos limpas e contas transparentes, que não mentia, não trapaceava, não enganava a ninguém. E o mais perfeito modelo de coerência, a imagem do sábio e sonso Partido Social Democrático, o celebrado PSD centrista, nascido no bojo da ditadura quando acabou o Estado Novo, em jogada clássica de Vargas para manter o apoio da máquina administrativa até a malha municipal. Fundador do partido, pessedista-símbolo, presidente desde a entaladela na escolha do candidato na sucessão de Dutra até a extinção dos partidos pela estupidez do AI-2, em 27 de outubro de 1965, no governo de Castello Branco. Com o lenço no nariz, desajeitado, pouco à vontade filiou-se ao MDB e ao PDS, a sigla que não enganava a ninguém.
O comandante não errava o alvo. A série de bobagens, de equívocos primários repetidos nos tempos de sua militância e de observador mereceu a sua crítica rigorosa e firme como corte de bisturi: contra a candidatura do sogro e amigo na volta por cima de 50, que acabou na tragédia da jogada genial do suicídio; contra a burrice da extinção dos partidos; previu e tentou evitar a deposição de Jango, em 64, com os erros da radicalização e o fim do parlamentarismo.
Se espichasse a vida até o seu centenário, o governador, deputado, senador, presidente do PSD, o comandante Amaral Peixoto encontraria a fórmula para a crise institucional que se anuncia no lodaçal de corrupção que lambuja a desmaiada estrela vermelha do PT e salpica as paredes do Palácio do Planalto.
Com as lentes grossas dos seus óculos, os olhos cansados do comandante enxergavam um cisco no infinito.