Quando se fala em programas de preservação da natureza, pelo menos duas questões permanecem, invariavelmente, sem resposta adequada. A primeira, e mais óbvia, é como mensurar a importância de um trabalho desse tipo. A segunda, mais complexa, diz respeito ao impacto que esses programas terão sobre o futuro. É possível avaliar, por exemplo, o impacto que a reestruturação da grade curricular de um curso de Ciências Biológicas, com reforço para o enfoque conservacionista, pode ter sobre e para as gerações futuras?

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Sabemos, de antemão, que a resposta a ambas as questões é não. No máximo podemos fazer inferências. Mas formulá-las e pensar sobre elas é, no entanto, um exercício no mínimo saudável, que nos ajuda a tomar consciência de que há, sim, utopias realizáveis e, ainda mais, de que existe vida para além do culto ao individualismo tão comum atualmente.

Um bom caminho para se entender as dimensões de um trabalho consistente em prol do meio ambiente é reservar um tempo para analisar as quase mil pastas de projetos que recheiam os arquivos da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza. Se, por um lado, o trajeto que une a pesquisa a um efetivo trabalho de conservação parece longo e labiríntico, por outro, um observador atento não demorará a encontrar atalhos que permitem a transformação da teoria em prática com resultados concretos.

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Vários casos confirmam que, com clareza de critérios e objetivos e efetividade no trabalho, é possível diminuir cada vez mais a distância entre teoria e prática. Um trabalho do professor Paulo De Marco Júnior, da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, ilustra exemplarmente essa tese.

O ponto de partida do professor mineiro foi o estudo das libélulas, conhecidas cientificamente como odonatas. Seu objetivo era mapear as áreas de ocorrência desses insetos, sobretudo os da família Gomphidae, nas bordas de manchas protegidas da Mata Atlântica em Minas Gerais e na Bahia. Em campo, De Marco constatou que, dada a sua condição de predadores no topo da cadeia dos sistemas subaquáticos, as libélulas são indicadores naturais do estado de degradação dos lugares onde vivem. Esses singelos insetos são sensíveis à alteração dos ambientes – e sua maior ou menor presença sinaliza, igualmente, um maior ou menor grau de degradação da natureza.

Há libélulas que desaparecem aos primeiros sinais de desequilíbrio. "Elas são a chave para um entendimento complexo da saúde ambiental", diz o professor, que considera de vital importância saber como as libélulas se distribuem pelo Brasil. Afinal, o comprometimento sistemático dos hábitats desses insetos pode provocar um efeito cascata de perda de muitas outras espécies, com redução desproporcional da biodiversidade.

Três espécies de libélulas brasileiras correm risco de extinção, uma delas do gênero Leptagrion, que habita bromélias e pode desaparecer em pouco tempo. Mas é impossível estimar quantas espécies já foram perdidas antes mesmo de serem conhecidas – talvez "dezenas", estima De Marco, que é mestre em Estatística, doutor em Ecologia e um dos fundadores do Instituto de Pesquisas da Mata Atlântica, organização que dirigiu por oito anos. A ONG, criada na década de 90, fez da pesquisa científica uma trincheira na defesa da floresta no Espírito Santo.

Uma década mais tarde, De Marco (e seu projeto) recebeu apoio da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza e graças a esse apoio montou um inédito banco de dados, que abrange informações sobre 514 das 662 espécies conhecidas de libélulas. Além disso, identificou locais em Minas Gerais e na Bahia onde é inadiável a implantação de reservas de áreas de Mata Atlântica, sob pena de comprometimento irreversível da qualidade ambiental. Estava construída, assim, a ponte entre teoria e prática; feita a ligação direta entre a pesquisa acadêmica e a ação conservacionista.

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Há muitas pedras no caminho de pesquisadores como o professor De Marco, obstáculos cuja superação exige doses altíssimas de paciência, meticulosidade e dedicação sem limites. Para homenagear o esforço desses profissionais, a Fundação O Boticário de Proteção à Natureza acaba de lançar um livro que reúne 15 histórias igualmente exemplares. Esse livro espelha o trabalho incansável – e, na maioria das vezes, anônimo – de profissionais de diferentes áreas para proteger e conservar animais tão distintos quanto onças, lobos, tubarões, pequenos roedores, pererecas, jacarés e aves, além de plantas, florestas e rios brasileiros. Embora tenham objetos diversos de estudo, esses profissionais compartilham um amor quase incondicional à vida em todas as suas formas.

Os arquivos da Fundação O Boticário reúnem quase mil desses casos de amor à natureza e todos os projetos espelham o mesmo compromisso de proteção ao meio ambiente. Como as libélulas exaustivamente estudadas por De Marco, todos são importantes – e, cada qual a seu modo, fundamentais para a manutenção do equilíbrio da vida na terra.

Miguel Milano é diretor técnico da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza e diretor de responsabilidade social de O Boticário.