A criação da Receita Federal do Brasil, pela Medida Provisória n.º 258/05, batizada de Super- Receita, possibilita algumas reflexões que, realizadas em profundidade e com propósitos construtivos, podem melhorar a produção normativa do país e fortalecer a segurança jurídica, pedra de toque da ordem jurídica, que tem sido abalada permanentemente pelas alterações bruscas da legislação, mas que é essencial ao desenvolvimento do país.
É ilusório imaginar-se que haverá condições para o nosso crescimento sustentável se, de uma hora para outra, um gênio da raça incrustado na tecnocracia federal, bolar uma solução para determinada questão, viabilizando-a mediante a forma de medida provisória, e ministro e Presidente da República, jejunos jurídica e constitucionalmente, meterem o jamegão nessa modalidade de produção excepcional e precária de normas jurídicas, e ela começar a produzir os seus efeitos no mundo.
A estabilidade da ordem jurídica é atributo essencial à realização de negócios e aos investimentos. Mudanças de regras causam perplexidades e disfunções, desequilibrando o funcionamento das instituições, provocando incertezas em relação ao presente e temores quanto ao futuro. Conturba-se o ambiente, pois a previsibilidade do que vai acontecer no mundo jurídico, não dependerá do que ocorre abertamente no Congresso, mas das misteriosas alquimias engendradas nos gabinetes da tecnocracia, cujas janelas para introdução nos recintos de sua elaboração dependem do patrocínio de tesoureiros partidários do tipo Delúbio ou viabilizadores mágicos como Marcos Valério. Nessa ambiência a governança adquire contornos de Cosa Nostra e as autoridades, quando consultadas sobre as origens e fundamentos reais de suas decisões, submetem-se voluntariamente ao contágio da amnésia, que as faz esquecer que, na República, os titulares do poder não são seus donos ou proprietários, mas foram ali colocados pelo povo, ao qual devem prestar contas, como qualquer mandatário.
A República fica confusa quando o chefe do Executivo opera como se fosse o guia iluminado da nação, e vai absorvendo competência de outros poderes do Estado, e elege divindades duvidosas para o seu culto, às quais oferece prendas, agrados e obséquios, como o mercado e o FMI. Neste país de sincretismo religioso, sexta-feira é dia de oferendas e pagamento de obrigações de alguns cultos. O Senado Federal ao recusar quórum para apreciar na undécima hora a Medida Provisória n.º 258/05, deixando esvair a sua eficácia e validade, cumpriu religiosamente a sua obrigação cívica e constitucional, colocando na lixeira normativa do país diploma excepcional e precário de índole inconstitucional.
E deu recado colaborativo ao guia da nação, cuja iluminação tem sofrido curto-circuitos. A vigência da medida provisória, para ter permanência, depende de ela atender ao pressuposto da urgência. Para tanto há de ter boa gerência, de que se anda em carência.
Osíris de Azevedo Lopes Filho é advogado, professor de Direito na Universidade de Brasília (UnB) e Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-secretário da Receita Federal.
osirisfilho@azevedolopes.adv.br
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