A questão do poder de investigar do Ministério Público, envolvida na discussão da PEC 37, é muito mais profunda do que, em princípio, possa parecer. Radica no modelo de Estado que se quer adotar para a gestão da sociedade moderna. Sem dúvida, no Brasil, pelo menos nas últimas duas décadas – caracterizadas por um redimensionamento da administração pública, com expressiva ampliação dos quadros funcionais, preenchidos por critérios pouco técnicos, sob forte influência de loteamentos políticos – tornou-se cada vez mais importante o desenvolvimento de mecanismos de controle aptos a coibir os desmandos administrativos, as irregularidades e distorções extraídas do desprezo aos princípios da impessoalidade e moralidade, o afastamento da probidade nas instâncias dos mais diferentes poderes, a corrupção capilarizada e, não raras vezes, até mesmo institucionalizada, no regime republicano ultramar (a partir do centro).

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De tão forte viés histórico e resistente ranço autoritário, expandiu-se, na base do nosso movimento de retomada democrática, saudável processo de reforma normativa. O Ministério Público, filho dileto dessa bandeira de luta na defesa da sociedade, vem protagonizando parte desse movimento cívico de transparência no Brasil, notabilizando-se em sua atuação proativa na implementação de leis de claro alcance social, como as da improbidade administrativa, responsabilidade fiscal, lavagem de dinheiro, ficha limpa, e acesso à informação. Esse papel do Ministério Público não é, aqui, uma anomalia jurídica ou um fenômeno isolado, mas, em todo o mundo democrático, vem ele ganhando maiúsculo status constitucional, habilitando-se com garantias que o tornam capaz de fazer prevalecer o governo das leis sobre o governo dos homens.

Ao se defender a manutenção do poder de investigar do Ministério Público não se está, pois, a adotar postura meramente corporativa, nem apenas a se invocar o que há de mais avançado nas democracias modernas (nos países mais desenvolvidos, o MP não só detém, como comanda a atividade investigatória, que é, assim, organizada de seu gabinete, pois é a instituição a destinatária imediata dela, como titular exclusiva da ação penal pública), afastado de modelos políticos não tão democráticos (hoje limitados a três: Uganda, Indonésia e Quênia vedam a investigação ministerial). Está, sim, reafirmando-se a impostergável garantia de que a democracia brasileira está consolidada, não mais se aceitando golpes contra o povo, dele retirando ou lhe restringindo direitos, como o de alcançar, finalmente, um mundo de iguais, tanto mais justo quanto mais honesto com os valores morais.

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Está-se, ainda, prestigiando a própria polícia, que continua a contar, em sua função precípua de investigar, com a parceria do Ministério Público, dotado das necessárias garantias, como a da inamovibilidade, na suplementação de atividades investigatórias que lhe permitam não só exercer seu eficaz controle externo como também atingir as teias do crime organizado, os tentáculos da improbidade administrativa, os abusos do poder político e econômico e, enfim, o núcleo duro do desequilíbrio social que gera a exploração e a exclusão, de modo a prosseguir nesse caminho sem volta de um Brasil cada vez melhor e mais justo. Dizer não à PEC 37, portanto, é dever ético da cidadania digna brasileira, tão heroicamente conquistada.

Gilberto Giacoia, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pelas Universidades de Coimbra e Barcelona, é procurador-geral de Justiça do Paraná.

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