| Foto: Antonio Costa/ Gazeta do Povo

Faz 17 anos que um pastor "chutou a santa" durante programa de tevê no qual, batendo mãos e pés na estátua representativa de Nossa Senhora Aparecida, verberava contra o feriado católico de 12 de outubro e a idolatria de imagens. O ato causou estrépito nos meios de comunicação e as manchetes falavam em guerra santa iniciada por membros de uma das muitas designações cristãs não católicas. Parecia que as batalhas sangrentas na Europa dos séculos 16 e 17, entre cristãos católicos romanos e cristãos que renegaram o Papa, seriam reencenadas na colônia lusitana. Felizmente, o debate acalorado não derramou sangue.

CARREGANDO :)

Imputou-se ao pastor vilipêndio público de objeto de culto religioso, conduta descrita no artigo 208 do Código Penal. Se soa estranho que haja tal crime, insta dizer que o projeto do novo Código Penal repete, no artigo 447, a mesma dicção. Em plena modernidade se mantém a longa história dos crimes de heresia, para os quais o Livro V das Ordenações Filipinas preceituava multas, confiscos, açoites, morte dos hereges, apóstatas, blasfemadores, benzedores. A laicidade semirreligiosa das metrópoles brasileiras nem imagina que exista lei vigente destinada a punir blasfêmias.

Se os autores do filme A Inocência dos Muçulmanos o tivessem produzido no Brasil, seriam processados pela prática de crime contra o sentimento religioso? Sim, porque o direito pátrio protege o sentimento religioso, criminalizando zombarias, ultrajes, vilipêndios. A distinção entre crítica teológica e escárnio não é sempre nítida e, além disso, sói acontecer vitimização excessiva por parte de pessoas que se sentem ofendidas por debates e críticas absolutamente legítimas. Assim, lidar com pluralidade de opinião e sentimentos religiosos é delicado porque há o dever de assegurar equilíbrio entre a liberdade de expressão do pensamento – preciosa para crentes e incréus – e o sentimento religioso, valioso para quem tem fé.

Publicidade

O Judiciário brasileiro, atendendo a um pedido de associação de fiéis islâmicos, determinou ao hospedeiro do vídeo que o retire do ar, sob argumento de que houve a intenção de humilhar valores e crenças, isto é, vilipendiar. Na decisão liminar, exarada dia 25 de setembro, ressaltou-se o conflito entre a liberdade de expressão e a proteção contra manifestações que possam incitar a discriminação em razão da opção religiosa. Na Constituição Federal, a liberdade de pensamento convive com a de crença e a garantia de proteção ao locais de culto e liturgias.

Dificílimo eleger um dos valores constitucionais em situações de salvação e sacrifício. Salva-se a liberdade de pensamento e sacrifica-se a proteção a liturgias, ou esta em detrimento daquela? Qualquer escolha é susceptível a crítica razoável. As eleições entre alternativas moralmente corretas são mais sofisticadas que as obviedades do bem e do mal.

O essencial neste turbilhão das reações ao filme amador é não ter vergonha da cultura ocidental que cultua a separação entre Estado e igrejas, a liberdade de expressão, de religião. Mais que isso, o destempero deve servir para reforçar a convicção de que política e religião devem ser nitidamente separadas, tal como as culturas eurorreferenciadas consolidaram.