A cena é inédita e atrai o olhar dos transeuntes. Jovens e crianças usam os ônibus do transporte público carioca para estampar a falência da educação brasileira. Falência, aliás, sabida e conhecida por qualquer brasileiro e que insiste em mostrar sua face no dia a dia das grandes cidades.
A Linha 476, que faz o trajeto Méier-Leblon, na Zona Sul da cidade, tem sido alvo de passageiros nada convencionais. Adolescentes têm usado os coletivos para expor cenas de violência, vandalismo e muita confusão. Sem qualquer critério ou motivos, sobem no teto dos carros e se transformam em surfistas de lata. Para "protestar", quebram janelas e perturbam o ambiente. O que já é ruim se transforma no caos. Quem sabe pela proximidade do carnaval, os "bandidos mirins", atribuição dada pelo especialista em segurança pública Milton Correa da Costa em entrevista ao site G1, queiram transformar os ônibus em carros alegóricos. As alegorias e adereços apresentados pelos infantes traduzem o samba-enredo de sua realidade: a total marginalização. Na entrevista, Correa da Costa afirma que "inclusão social não justifica isso, eles estão vivendo em sociedade, onde deve existir ordem pública". Analisemos a afirmação nos padrões carnavalescos.
No quesito comissão de frente, ala que mostra ao público a que veio a escola, os ilustres passistas mirins merecem nota 10. Bem caracterizados, com fantasias originais e uma perfeita harmonia entre seus componentes, os moradores da linha Méier-Leblon desfrutam de um privilegiado camarote para assistir ao mais autêntico desfile de carnaval. No tema evolução, a Escola de Samba Unidos da Linha 476 é imbatível. Os integrantes, com vibração e empolgação exacerbada, estão em compasso e ritmo com a bateria. Percorrem a passarela com animação, coesos e focados num só objetivo: vencer o carnaval da vida. A plateia é contagiada pela garra de cada componente das diversas alas, que não deixa passar nenhum movimento sem uma foto ou filmagem. Nota 10!
No quesito fantasia, a escola é digna da nota máxima! As roupas explicam de forma objetiva o enredo da escola e esclarecem ao público a história que quer contar. O trabalho do figurinista é exemplar. Peças leves e baratas; afinal, nestes tempos de crise a ordem é economizar. Outro 10! Para finalizar o julgamento da Unidos da Linha 476, vamos ao samba-enredo. Com uma criação musical impecável, clareza no argumento e fácil compreensão tanto pelos jurados quanto pelo público, não resta dúvidas de quem será a grande campeã do carnaval carioca de 2015. Durante a trajetória, o público é envolvido pela história que desafia a caminhada da sociedade brasileira deste a sua origem. O enredo contado por esses jovens continua idêntico ao de 500 anos atrás: violência, opressão, marginalização e desprezo.
Os limites geográficos da Marquês de Sapucaí não puderam conter os passistas da escola de samba que toma conta de todo o Brasil. Correa da Costa está correto. De fato, os "bandidos mirins" estão integrados à sociedade brasileira. Não há duvidas. Num país autointitulado como país do carnaval, a Unidos da Linha 476 encontra espaço para se deleitar e mostrar, durante todo o ano, seu desfile pelas terras de Pindorama. De norte a sul. Mas a pergunta que não cala: este é o desfile que queremos ver? O enredo permanecerá imutável? Este é o nosso carnaval? Difícil saber. Mas o carnaval está próximo e não temos tempo a perder. É assim que a história se repete todos os anos. O samba-enredo vai sacudir o povão nas arquibancadas da vida para tudo se acabar na quarta-feira. Depois, a vida continua. E seja lá o que Deus quiser. Na dúvida, fiquemos com os ensinamentos do imortal sambista Cartola: "Deixe-me ir / Preciso andar / Vou por aí a procurar / Rir pra não chorar".
Renata Cerci Pompermayer Ruschel é advogada em Curitiba.
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