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São “islâmicos” os terroristas?

Nos dias seguintes aos atentados em Paris, o Jornal da Globo ofereceu análises quase irretocáveis sobre a tragédia, evidenciando que o jornalismo televisivo é capaz de traçar sofisticados roteiros conceituais para o grande público. Quem assistiu àquelas edições aprendeu que o terror jihadista nutre os partidos de extrema-direita consagrados à xenofobia e à islamofobia. Ficou sabendo, ainda, que os ataques ao Charlie Hebdo e ao mercado kosher derivam das redes de terror da Al Qaeda e do Estado Islâmico, cujas raízes ideológicas encontram-se na obra do egípcio Sayyd Qutb (1906-1966), líder de uma das correntes da Irmandade Muçulmana. Contudo, o telespectador ouviu a expressão "terroristas islâmicos", que conecta o terror ao Isl㠖 e, potencialmente, enterra um cenário complexo sob uma narrativa tão simples quanto sedutora.

No vídeo divulgado após os atentados, o terrorista franco-senegalês Amedy Coulibaly trajava uma túnica branca (thawb), como as usadas por Osama Bin Laden e pelo autointitulado califa do Estado Islâmico, Abu Bakr al-Baghdadi. A identidade islâmica dos jihadistas é seu maior trunfo político: eles reclamam a liderança do 1,8 bilhão de muçulmanos espalhados pelo mundo e não reconhecem legitimidade nas fronteiras nacionais que separam os fiéis. A linguagem desempenha, nesse caso, uma função política crucial. Na expressão "terroristas islâmicos", há uma concessão valiosa aos jihadistas. Mas seria ela verdadeira – e, portanto, inevitável?

Nomear é uma operação delicada, ao menos quando se busca a verdade histórica possível. Karl Marx batizou sua corrente com o termo "comunista", distinguindo-a dos anarquistas. Um consenso diz que Lenin era comunista – mas, e depois? Eram comunistas os regimes de Stalin, Mao Tsé-tung, Pol Pot, Fidel Castro? Incontáveis esquerdistas preferem empregar o qualificativo "stalinista" ou a expressão "socialismo real" para separá-los da tradição política marxista, protegendo o comunismo da condenação histórica dos regimes que desfraldaram sua bandeira. Certamente, porém, negar o adjetivo comunista a essa coleção de tiranias não é o mesmo que extirpar os jihadistas da aura do Islã.

O caminho de inquirir sobre a aderência aos valores de um Pai Fundador nunca produz mais que uma infindável polêmica. A exegese dos escritos de Marx revela tanto uma defesa radical das liberdades políticas quanto os fundamentos doutrinários das ditaduras de partido único. Nos textos sagrados do Islã, a ideia da paz ("assassinar um homem é como matar toda a humanidade") convive com a conclamação à guerra contra o infiel. Contudo, o Islã é 12 séculos mais antigo que o marxismo: a leitura literal do Corão ou da Suna, assim como a da Bíblia, não é um argumento filosófico, mas uma visita anacrônica às paisagens de outra época. Sayyd Qutb, o arauto do jihadismo contemporâneo, reivindica justamente um Islã ancestral imaginário, inscrevendo-se na tradição de pensadores puritanos como Ahmad ibn Hanbal (780-855) e Muhammad al-Wahab (1703-1792).

O caminho de investigar a trajetória política e organizacional gera resultados mais relevantes. Os regimes de partido único da URSS, da China, do Camboja e de Cuba emanaram da corrente stalinista majoritária que assumiu o controle da Internacional Comunista. É legítimo denominá-los "comunistas", mesmo se isso provoca espasmos de horror na esquerda revolucionária antistalinista, que perdeu a "guerra civil" no interior do marxismo quase 100 anos atrás. Contudo, a aplicação do mesmo critério aos terroristas da jihad global tem implicações muito distintas.

A proclamação da jihad pelo egípcio Qutb deflagrou uma cisão na Irmandade Muçulmana. A maioria da organização rejeitou o programa ultrarradical, evoluindo como partido fundamentalista perseguido pelo regime militar de origem nasserista. O caldo de cultura das atuais organizações jihadistas foi cozido pelo encontro dos seguidores de Qutb com a versão saudita do fundamentalismo islâmico, que é um galho secundário na tradição religiosa. De fato, a jihad global nasce da aliança de uma dissidência política com adeptos radicalizados de uma seita puritana inspirada em Hanbal e Wahab. Atribuir ao Islã a responsabilidade pelo jihadismo é mais ou menos como culpar o romantismo alemão pelas atrocidades do nazismo.

Os soldados rasos da jihad na Europa chegaram ao jihadismo diretamente, sem a intermediação do Islã. Salvo raras exceções, eles carecem de formação religiosa e, em outro tempo, poderiam militar nas fileiras de grupos extremistas laicos, de esquerda ou direita. Na hora da carnificina na redação do Charlie Hebdo, incontáveis muçulmanos franceses comuns deram um passo à frente para condenar os "terroristas islâmicos". O gesto louvável não deveria, porém, ser encarado como uma obrigação moral. No fim das contas, ninguém exige que judeus parisienses como os alvejados no mercado kosher demarquem suas diferenças em relação aos arautos da "limpeza étnica" no Grande Israel.

"O Islã declarou guerra à nossa civilização", declarou Marine Le Pen, formulando a narrativa da extrema-direita xenófoba e antecipando os rumos de sua campanha nas próximas eleições gerais. O qualificativo "terroristas islâmicos" adapta-se perfeitamente ao planejamento político da Frente Nacional, mas é uma descrição superficial e distorcida do jihadismo. A resposta certa a Le Pen foi oferecida por Angela Merkel, dias atrás, quando disse que "o Islã faz parte da Alemanha".

Anders Behring Breivik, o fanático norueguês que matou dezenas de adolescentes em julho de 2011, definiu-se como um "cruzado moderno" e falou em nome de uma suposta rede internacional de cavaleiros templários. Felizmente, apesar daquelas proclamações, não se difundiu a noção de que ele era um "terrorista cristão". Por que condecorar os jihadistas com uma medalha de fé religiosa negada a Breivik?

Demétrio Magnoli é sociólogo.

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