A leitura é tema de primeira ordem ou um apêndice do debate educacional? A depender da série Leitura na Prática, que a Gazeta do Povo encerrou ontem, depois de seis semanas de publicações, a resposta só pode ser sim. Mesmo sendo difícil descolar os livros e a escola, a leitura deve ser tratada como prioridade nas políticas públicas e não apenas como consequência da escolarização. Motivos, a rodo.
Em primeiro lugar, há pelo menos 60 anos teóricos do naipe de Roland Barthes, Jauss, Iser e Umberto Eco focaram o debate da leitura no público e revelaram o leitor como um arquivo vivo, de alto grau de complexidade, derrubando a aura monolítica que ainda os cercava. A leitura, por consequência, passou a correr em baia própria, criando um imenso arsenal de conhecimento.
Por ironia, demorou para a questão sair dos círculos acadêmicos e cair na roda. Ou na rede. A crise provocada pela era informática tirou da sonolência editores, professores, gente da imprensa. Como mostrou uma das entrevistas publicadas pela Gazeta, na última década a leitura ganhou um alto grau de notoriedade. Para Galeno Amorim, diretor da Fundação Biblioteca Nacional, não foi um ou outro fator que levou a esse interesse, mas uma soma de esforços. Foi reação. Em especial da escola, onde a leitura ganhou brilho.
As bibliotecas dos colégios estão mais vivas. Há figuras novas, como a dos agentes de leitura. E uma troca efetiva do lugar do livro que saiu da sala escura, na qual era governado por profissionais nem sempre talhados para o ofício, e ganhou os pátios, na forma de encenações e de contação de histórias. Da mesma maneira, fora dos muros do sistema de ensino esse status dado aos livros encontrou eco. Iniciativas como a da biblioteca da Vila das Torres conhecida como "a biblioteca que saiu do lixo" mostraram o poder de comoção e de encanto da população. Não restam dúvidas de que o público aplaude ao ver um bairro não ser associado à violência, mas à leitura. Ler virou sinônimo de redenção esse é o ponto em que estamos.
O risco, no entanto, é que todos os fogos de artifício soltos em prol da leitura comovam, mas não consigam sair do nível mais epidérmico. Um dos maiores entraves para que vinguem as políticas de leitura reside na tendência de racionalizar essa discussão, tratando-a com os rigores do agronegócio. Não poucos setores da sociedade querem que a leitura seja reduzida a uma equação numérica, um cálculo que prove sua relação com o desenvolvimento. Do contrário, não tem conversa. Intelectuais como o pesquisador de arte Teixeira Coelho, diretor do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, descartam essa obrigação, com impropérios, se preciso for. Negar as evidências de que a leitura faz avançar a sociedade é argumento dos tolos. Não haveria necessidade de dados comprovados. Mas tudo indica que os índices de pesquisa terão de surgir das tabelas e servir de prato aos tecnocratas, como sugere o próprio Galeno Amorim, como saída para captar recursos.
Mas da missa é a metade. A outra metade é que se tem muito a festejar na tal década em que a imprensa, a escola, as igrejas é do padre Marcelo Rossi o recorde do mercado editorial brasileiro em todos os tempos aprenderam muito sobre motivações para a leitura. Mais: sabe-se agora de que maneira o brasileiro se entrega, ou não, a essa prática. Pena será se esse conhecimento acumulado não for mais e mais utilizado, fazendo que o trato com os livros vença um de seus maiores entraves: a concorrência. Os meios eletrônicos, os serviços de televisão por assinatura, a era do lazer e do entretenimento, entre outros, criaram um sequestro do tempo, em detrimento do objeto livro, assim como do jornal. É questão nevrálgica. E de dar nos nervos. Os entusiastas diriam que não a internet, as mídias sociais e toda a parafernália têm feito muito pela leitura. O mesmo se diga para o lazer, cujo impulso ao consumo da cultura é notável. Em contrário a isso, só os puristas e retrógrados.
Mas não se pode esquecer, nessa era dos excessos, que a leitura de impressos provoca formas próprias de assimilação e de sinapses. Os tecnocratas ainda não se deram por convencidos disso, é verdade. Mas o mesmo não se pode dizer da sociedade civil, cada vez mais disposta a transformar geladeiras, balcões de padaria, salinhas desativadas nos condomínios, entre outros espaços, em bibliotecas. A verdade está às margens. Que fique registrado.
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