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Paira no país certa insatisfação com o STF. O atual conceito do tribunal difere grandemente daquele citado por ex-ministros notáveis, como Rui Barbosa e Evandro Lins e Silva, que em orações públicas expressaram elevado apreço pela suprema corte – compreendendo-a como intérprete e guardiã da Constituição. Há algum tempo, o hoje resignado ministro Marco Aurélio – que, em recente declaração à revista Veja, afirmou que o STF “é o tribunal que nós temos” – também se mostrava otimista, conceituando o Supremo como “última trincheira da cidadania”.
O clima de ceticismo não é infundado. O colegiado a quem se confia a segurança jurídica do Brasil é tão instável que se diz, em tom de blague, que o país tem 11 Constituições. Em alguns casos, a análise jurídica sucumbe ao calor dos acontecimentos políticos; noutros, os julgamentos parecem ser orientados pela vaidade, ampliada pelas transmissões ao vivo na TV Justiça. A aplicação da Constituição e o bom andamento da democracia ficam em segundo plano, perdendo terreno para a batalha de egos. Como adverte o professor Joaquim Falcão, um dos maiores estudiosos da história e estrutura do STF, “esse comportamento faz do instante da celebridade individual a erosão da legitimidade institucional”.
Os ocupantes da corte são juristas de expressiva capacidade intelectual, com currículos brilhantes. Sua idoneidade também não está em xeque, pois não há provas a desabonar a honestidade dos ministros. Contudo, bastarão tais atributos para bem exercer a função jurídico-política de zelar pelo cumprimento da Constituição? A resposta demanda uma análise racional e científica, sustentada justamente pelos princípios constitucionais que devem ser salvaguardados pelo Supremo Tribunal Federal.
Na esfera dos julgamentos relativos ao processo penal constitucional, o STF, infelizmente, não vem exercendo bem seu papel. Trata-se de constatação preocupante, posto que não há ramo do direito mais imbricado com a Constituição do que esse. Para justificar esse posicionamento, cito decisões recentes.
A primeira – e, provavelmente, mais emblemática – trata do julgamento do habeas corpus impetrado em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que fosse reconhecida a suspeição do então juiz federal Sergio Moro em ação penal decorrente da chamada Operação Lava Jato. Deixando o mérito da discussão de lado, o que se viu na ocasião foi uma guerra verbal que, inapropriadamente, se espraiou das sessões de julgamento para manifestações públicas. A verborragia incluiu agressões morais e injustas à instituição do Ministério Público e a seus membros, bem como verdadeira inversão de papéis, apontando o juiz do caso como se bandido fosse.
Outro ponto a lamentar: buscou-se a resolução do problema por meio de decisões liminares, quando o desejável e justo seria o julgamento pelo colegiado. Por fim, e não menos grave, houve pedido de vista que ultrapassou, ilimitadamente, o prazo de devolução dos autos. O feito foi levado a julgamento no momento mais oportuno para que prevalecesse o entendimento do ministro que havia retirado o caso de pauta para estudo quase dois anos antes da continuação do julgamento. Lembremos, ainda, das atípicas lágrimas do julgador em elogio à defesa.
Outra decisão a atestar que o STF está atualmente aquém do seu papel: a instauração do Inquérito 4.781 por iniciativa do então presidente da corte (Portaria GP 69, de 14 de março de 2013), e distribuído diretamente a ministro determinado para conduzi-lo. A investigação foi justificada pela “existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”. Também neste caso os primados constitucionais do processo penal foram desobedecidos às escâncaras.
Novamente sem adentrar na questão de fundo, é notória a superposição de figuras do ministro que, a um só tempo, é investigador, julgador e vítima (!). Ao arrepio da estrutura acusatória do processo penal brasileiro, em um rompante inquisitivo, o STF assim agiu. Como se não bastasse, 1. a portaria não menciona indiciados; 2.não indica o tempo e o lugar dos fatos objeto da investigação; 3. o Ministério Público não participa da investigação; 4. a Procuradoria-Geral da República opinou pelo arquivamento dos autos; 5.a manifestação foi indeferida. Por fim, foi decretado o sigilo absoluto do procedimento.
A validade jurídica da referida investigação foi questionada na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 572, proposta pelo partido político Rede Sustentabilidade, com relatoria do ministro Edson Fachin. Em parecer elaborado a pedido do Colégio de Presidentes dos Institutos dos Advogados do Brasil, instituição que ingressou como amicus curiae no procedimento, o professor René Dotti apontou o desfile de ofensas constitucionais no caso:
“Retornando, porém, ao intervalo lúcido para observar as entranhas do fantástico Inquérito 4.781, é necessário pontuar as violações à Constituição: (a) art. 5.º, LIII (regra do juiz natural); (b) art. 5.º LIV (devido processo legal); (c) art. 5.º, LX (restrição da publicidade); (d) art. 5.º, § 2.º (reconhecimento de outros direitos e garantias expressos na Constituição); (e) art. 93, IX (publicidade de julgamentos); (f) art. 129, I (privatividade da ação penal); (g) art. 129,II (zelo pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição); (h) art. 129, VII (controle externo da atividade policial); (i) art. 129, VIII (diligências investigatórias e inquérito policial; (j) art. 144,§ 1.º, I (atribuições da Polícia Federal).”
Apesar das evidentes violações constitucionais, o Supremo Tribunal Federal (composto, repita-se, pelos mesmos ministros julgadores, investigadores e vítimas) declarou, por 10 a 1, a legalidade e constitucionalidade do inquérito.
No âmbito deste mesmo inquérito, ocorreu a prisão em flagrante do deputado federal Daniel Silveira. Não obstante a gravidade de seus atos e a reprovabilidade de sua conduta, o parlamentar foi preso em flagrante por divulgar vídeo com conteúdo criminoso, que, conforme decisão do STF, “permanece disponível e acessível a todos os usuários da rede mundial de computadores, sendo que até o momento, apenas em um canal que fora disponibilizado, o vídeo já conta com mais de 55 mil acessos”. De acordo com o ministro Relator, a manutenção do referido material na internet caracterizaria a flagrância ensejadora da custódia cautelar.
A situação apresentada é, claramente, de crime instantâneo com efeito permanente, e não delito permanente – que poderia motivar a detenção em flagrante. O empenho para justificar o flagrante teve o claro intuito de garantir a prisão do parlamentar, que não poderá ser preso preventiva ou temporariamente, conforme disposto no artigo 54 da Constituição Federal. Trata-se da regra da “incoercibilidade pessoal dos congressistas” (consagrada no direito americano como freedom from arrest). O contorcionismo foi tal que, para se justificar a prisão em flagrante, foram invocados os fundamentos da prisão preventiva (CPP, art. 312). E, de forma absolutamente inusitada, expediu-se mandado de prisão no caso, o que é absolutamente incompatível com aquela modalidade de detenção.
Embora os exemplos pareçam indicar o contrário, vivemos todos sob a égide da mesma Carta Magna, repleta de direitos e garantias. Não se observa, nas decisões em tela, problemas de ordem técnica: os ministros são juristas de alto gabarito. Os desvios são frutos de uma crise institucional permeada por uma alta carga de interesses políticos, com pitadas de vaidade.
O professor Oscar Vilhena Vieira, na notável obra "A batalha dos poderes", cunhou a expressão “Supremocracia” para demonstrar a importância da mais alta corte brasileira. Analisando a atual situação, adverte:
“Os ministros precisariam se submeter a uma espécie de protocolo mais rigoroso, o que é imperativo para o bom desempenho de julgar dentro da mais alta corte de Justiça de uma democracia constitucional. A constante interferência no debate público e a ausência de uma postura rígida em relação a conflitos de interesses têm contribuído para a erosão da autoridade do Supremo. Se os ministros estiverem dispostos a reconstruir o capital reputacional do STF, têm de se empenhar em agir de forma mais colegiada, imparcial e com certa discrição”.
Temos de acreditar na Suprema Corte enquanto instituição. Ela é, e sempre será, a guardiã da Constituição. Ministros passam; o tribunal fica. Temos uma única Carta Magna. Só precisamos fazer com que os ministros tenham consciência disso.
*Alexandre Knopfholz, mestre em Direito, é professor de Processo Penal nos cursos de graduação e pós-graduação do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba)