As recentes manifestações ocorridas nas periferias urbanas, na França, não revelam apenas problemas de natureza social, marcados por uma complexa rede de segregações de ordem racial, cultural, social e econômica. Denunciam, também, problemas de adequação das estruturas jurídico-administrativas de alguns Estados europeus às demandas nascidas na contemporaneidade.
Ao ser indagado o que era Atenas, Temístocles teria dito: "Atenas somos nós". De fato, todos os espaços de poder da polis grega eram constituídos pelos cidadãos atenienses, excluídos os estrangeiros, mulheres e escravos. Aristóteles, em uma virada epistemológica, teria conceituado cidadão como aquele que participa, que atua nos processos decisórios da cidade.
A referência à antiguidade, ainda que caricatural, é aplicável. As estruturas jurídico-administrativas da espacialidade estatal francesa não contemplam dutos que permitam internalizar as demandas que incendeiam as revoltosas manifestações que amedrontam a sociedade. Não há espaços institucionais, devidamente estruturados, nem procedimentos eficientes de recepção e processamento dos reclamos dessa juventude compulsoriamente silenciada.
As mãos que lançam coquetéis molotov, são de jovens que foram desprovidos da condição cidadã de falar e de influir nos centros formuladores de políticas públicas. Jovens inabilitados para o discurso e para a prática política, por interdição de um Estado estruturado por uma racionalidade semelhante à da Corte, cujos salões eram reservados apenas para os "iguais". Uma arquitetura estatal, com porta de entrada apenas para os "bem vestidos", está sujeita a infiltrações e arrombamentos. Não há alternativa: ou democratiza-se e universaliza-se o acesso, ou compra-se armas aos porteiros...
É preciso perguntar quais os canais institucionais que o Estado francês oferece para que as demandas, protagonizadas por meio dessas manifestações tenham acesso aos centros decisórios. A seletividade operada pelo conduto parlamentar e partidário tem sistematicamente excluído tais demandas do diálogo político. Por outro lado, a ponte entre sociedade e Estado, criada pelas organizações não-governamentais, também não tem servido para condução de demandas formuladas pela população periférica das cidades do primeiro mundo. Inoperante a via da representação, restaria a participação direta. Entretanto, além de insuficientes os espaços e procedimentos de acesso direto, há obstruções produzidas por uma burocracia que perdeu toda referibilidade da dramaticidade social, vez que composta por uma elite bem empregada e bem remunerada.
Não basta ao Estado contratar mais policiais, professores, médicos ou assistentes sociais. O apelo das atuais demandas não se dirige às delegacias, escolas, hospitais ou centros de atendimento social. Trata-se de reclamos dirigidos à política, aos espaços de poder, aos núcleos de formulação de políticas públicas. Obviamente, esses jovens não são os mesmos de maio de 68. O apelo atual é mais modesto, porque voltado para condições materiais de existência. Lá, aliás, postulava-se contra um poder que, hoje, tem como pressuposto a sua inexorabilidade. Talvez, por essa razão, não se deseje extingui-lo, mas humanizá-lo.
Ainda que a emergência da situação imponha medidas drásticas, lançar centenas de jovens nas prisões e decretar "toque de recolher", apenas fortalece a lógica do silêncio imposto e da exclusão compulsória. Mais aconselhável seria a imediata implementação de mecanismos pelos quais esses jovens pudessem se manifestar, contribuindo decisivamente para a reconstrução democrática das estruturas jurídico-administrativas. Antes de ser calada, essa juventude deveria ser chamada à participação, conferindo-lhe a dignidade de co-autora da sociedade futura. Com a institucionalização de procedimentos de mediação e de busca de consenso, ambas as partes poder público e revoltosos consubstanciariam uma opção pelo diálogo político, contendo a violência protagonizada por esses e respondida, à altura, por representantes daquele.
Não se negue a plausibilidade dessa alternativa. A crise estrutural do Estado contemporâneo, tem gestado, em todos os quadrantes do mundo, inúmeros instrumentos que conferem maior porosidade às estruturas estatais. Ouvidorias públicas, câmaras setoriais de negociação, audiências públicas e planejamento participativo são alguns exemplos de mecanismos institucionais que poderiam ser adotados.
Entretanto, a criação de tais instrumentos deve ser acompanhada da disposição política para um diálogo que contemple a audição de novas vozes, antes restritas aos sussurros dos bares e das casas das "banlieues" (periferias). Vozes de uma juventude que se pretende retirar das ruas, calando-a com os grilhões das cadeias públicas e com o silêncio imposto pelo "toque de recolher".
Manoel Eduardo Alves Camargo e Gomes é advogado e professor da Universidade Federal do Paraná.
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