Do caos da pandemia à luz da busca pela soberania em insumos estratégicos, o investimento na área de biotecnologia no setor de saúde entrou de vez nos holofotes. Essa evidência é marcante no desenvolvimento de novos e mais baratos medicamentos biológicos, tanto para doenças infectocontagiosas quanto para as crônico-degenerativas ou de fundo genético.
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São chamados biológicos os anticorpos, vacinas e proteínas recombinantes desenvolvidos a partir de elementos como células animais e vegetais, bactérias, fungos e vírus e que podem ser direcionados a alvos específicos não-acessíveis às moléculas tradicionais, obtidas por síntese química.
Ariane Hinça, coordenadora do Observatório Sistema Fiep, cita que os desafios e oportunidades para a indústria de biológicos no Paraná estão por todo o caminho. “Eles estão no ambiente dinâmico e de processo contínuo que vivemos, de tecnologias únicas e tendências para investimentos em fabricação descentralizada, com rastreabilidade e aprovação de novos produtos de terapia celular e genética”, explica ela.
O assunto esteve no centro do Encontro de Rotas Biotecnológicas - Terapias e Diagnósticos Avançados, realizado nesta semana em Curitiba e promovido pela Federação das Indústrias do Paraná (Fiep) e pelo Sebrae/PR, que trabalham para mapear os caminhos para o setor com foco no ano de 2031.
Paraná terá parque com produção de insumos para até 40 milhões de vacinas
O Paraná vem se destacando no setor de biotecnologia: em julho deste ano, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) anunciou um investimento financeiro de R$ 200 milhões direcionado à estrutura do Parque Tecnológico da Saúde do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), na capital, com a meta de chegar a 2024 com uma produção de insumos que auxilie para até 40 milhões de doses anuais de vacinas.
A ideia desse investimento foi dar conta da importância de trabalhar com arranjos locais de produção de insumos estratégicos, uma carência que ficou escancarada durante os anos de 2020 e 2021, com a pandemia da Covid-19, como ressalta Marco Aurelio Krieger, vice-presidente de produção e inovação em saúde da Fiocruz.
“Aquele momento foi marcante pelo sucateamento total da cadeia logística global, com grande competição entre todos os países por insumos”, relembra Krieger. Ele menciona os muitos frutos da parceria com a Universidade de Oxford ao longo da pandemia, na produção da vacina AstraZeneca, que chegou a 153 milhões de doses entregues só em 2021.
“Inicialmente fizemos a produção com base na matéria prima IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) produzido no arranjo global da AstraZeneca, mas em menos de 10 meses fizemos a transferência total de tecnologia e, desde janeiro deste ano, há o registo da nossa vacina com incorporação do local e fabrico no Brasil”, afirma ele, que vê a nacionalização da produção dos componentes biológicos como um grande passo pela soberania em relação a esses insumos.
Esse grande investimento não só na produção de vacinas e testes, mas em toda a cadeia de suprimento, já teve reflexos em desdobramentos importantes, como no caso da varíola dos macacos. “Desenvolvemos em tempo recorde testes para a monkeypox, algo complexo visto que a varíola é considerada um agente de bioterrorismo, e qualquer insumo associado a ela é bloqueado de exportação por muitos países”, explica Krieger, apontando que os testes produzidos na fundação beneficiaram o Brasil e a América Latina.
Tecnologias da Covid-19 usadas para enfrentar outras doenças
O esforço para deter patologias infectocontagiosas segue agora para o enfrentamento de doenças crônico-degenerativas e doenças genéticas, usando as tecnologias trazidas ao Brasil durante a pandemia. É o caso da vacina de vetor viral, que imita uma infecção natural ao inserir nas células informações genéticas que as transformam em “fábricas” de produção de resposta de anticorpos, o que ajuda na destruição das células infectadas.
“O processo de domínio dessa tecnologia pela Fiocruz, que está bem encaminhado, também possibilita o uso em terapias avançadas em câncer e em doenças crônico-degenerativas, cujas pesquisas na área somam mais de 5 mil estudos clínicos diferentes no mundo”, explica o pesquisador, que vê na produção própria de insumos biológicos uma forma de o país tornar-se independente, dar respostas mais rápidas e com menos custos a algumas doenças.
“É preocupante que todas essas tecnologias dependam de compras feitas no exterior, como a de plasmídeos, que tem um custo elevado e leva muito tempo para ser entregue”, explica ele, citando que alguns tratamentos especiais chegam a custar de R$ 2 milhões a R$ 8 milhões ao SUS.
“Há um caráter estratégico na produção local e avançamos nas cadeias de suprimentos dessas tecnologias porque precisamos desse insumo perto e acessível para nossas vacinas e também para apoiar projetos externos que usem esses insumos, que aceleram ensaios clínicos”, diz ele.
Segundo Krieger, a decisão pelo investimento em biológicos pela Fiocruz parte de um monitoramento prospectivo das tecnologias que estão surgindo. “No campo do diagnóstico, por exemplo, 15 anos atrás focamos em testes rápidos moleculares, que se mostraram superimportantes na pandemia. Hoje, novas tecnologias para vacinas e terapias avançadas, baseadas em biológicos e genéticos, tendem a expandir, e nossa obrigação é dominá-las, para poder oferecer novas soluções e melhorar produtos existentes”, defende ele.
Aceleração de biológicos deve ocorrer em 2024
O pesquisador Valderílio Azevedo, da Edumed, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) reitera a atual dependência externa do Brasil em relação a remédios biológicos. Ele diz que se houvesse um “bloqueio” ao país, “80% dos pacientes que usam anticorpos monoclonais — um tipo de medicamento biológico — ficariam sem tratamento, porque são todos produzidos fora do território nacional”. Azevedo relembra que até pouco tempo atrás a insulina não era produzida por aqui. “Desenvolver produtos biotecnológicos tem a ver com soberania”, pontua.
Azevedo cita que, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), só 12% dos remédios disponíveis nas farmácias no SUS no Brasil são biológicos, mesmo sendo a área responsável por 60% dos gastos públicos com medicamentos no país.
O pesquisador acredita em uma aceleração do mercado a partir de 2024, principalmente no setor de medicamentos biossimilares, que são remédios biológicos que visam os mesmos resultados em termos de segurança, qualidade e eficácia em relação a um medicamento sintético existente e aprovado pelas agências reguladoras. “Mais de 100 medicamentos perderão patente de 2024 a 2029, e há 27 lançamentos previstos entre 2021 e 2025”, apresenta ele.
Entre as áreas médicas que têm ganhado a atenção dos desenvolvedores de biossimilares estão a reumatologia, dermatologia, gastroenterologia, oncologia, cardiologia e neurologia.
Principais desafios da biotecnologia
Entre os desafios da biotecnologia no segmento da saúde, que precisam ser superadas para que o Paraná se torne uma referência em soluções biotecnológicas integradas, inovadoras e sustentáveis até 2031, tratados durante o Encontro de Rotas Biotecnológicas - Terapias e Diagnósticos Avançados, estão:
- Ausência de marco legal para viabilizar ensaios clínicos
- Carência de recursos humanos preparados para administração e gestão de projetos
- Carência de visão global no planejamento de projetos
- Dificuldade na retenção dos recursos humanos qualificados
- Escassez de oportunidades para profissionais da área
- Excesso de entraves burocráticos, inclusive na concessão de patentes
- Excesso de tributos
- Insuficiência de financiamento para Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I)
- Insuficiência de incentivos para investimento de capital privado em PD&I
- Modesta integração entre os elos da cadeia
O evento teve a parceria do Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP), Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe e Faculdades Pequeno Príncipe, e apoio da Fundação Araucária e da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
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