Após a série documental do Globoplay revelar no fim do mês passado áudios de gravações que indicam tortura dos condenados pela morte do menino Evandro Ramos Caetano em Guaratuba, litoral do Paraná, em 1992, a defesa de duas acusadas pelo crime, Celina e Beatriz Abagge, vai entrar com recurso no Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) pedindo anulação do julgamento e indenização por parte do estado.
O advogado Antonio Augusto de Figueiredo Basto, que representa a esposa e filha do então prefeito de Guaratuba, Aldo Abagge, acusadas de serem as mandantes do crime em um suposto ritual de magia negra, já montou a argumentação do pedido de revisão criminal, que deve dar entrada no TJ-PR nos próximos 10 a 15 dias. Além disso, ele também vai acionar a Procuradoria-Geral da República (PGR), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Corte Internacional de Direitos Humanos pela denúncia de tortura cometida por representantes do estado.
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"Diante dessas fitas, o processo precisa ser passado a limpo. Os erros desse processo foram brutais, envolvendo várias autoridades. Espero que o Tribunal de Justiça agora se debruce com mais atenção ao processo", afirma o advogado. "Pessoas foram condenadas mediante provas obtidas sob tortura. Essas fitas foram subtraídas dos autos todos esses anos e agora precisamos saber quem fez e quem estava nas gravações, quem autorizou, além de quem guardou e não entregou essas fitas à Justiça", reforça Figueiredo Basto, que atuou na defesa das Abagge no primeiro julgamento, em 1998, em que todos os acusados foram inocentados, e agora volta a defender mãe e filha.
O corpo de Evandro, então com 6 anos, foi encontrado sem as mãos, vísceras e cabelos em abril de 1992, desencadeando uma sucessão de erros na investigação trazidos à tona a partir de 2018 no podcast "Projetos Humanos - O Caso Evandro" do jornalista e professor Ivan Mizanzuk. As apurações do podcast deram origem ao documentário "O Caso Evandro" do Globoplay. As gravações mostradas na série documental, que já haviam sido reveladas no podcast em março de 2020, apontam que não só as Abagge, mas os outros cinco acusados do caso, que ficou conhecido como "Bruxas de Guaratuba", teriam confessado o crime mediante tortura.
Após todos serem inocentados em 1998 pelo júri que foi anulado no ano seguinte, nos julgamentos de 2004 e 2011 Celina Abbage foi inocentada e a acusação dela prescreveu pela idade da ré. Já o pai de santo Oswaldo Marcineiro e seus ajudantes no terreiro de umbanda - o pintor Vicente de Paula e o artesão Davi dos Santos Soares - foram condenados a 20 anos. Vicente de Paula morreu de câncer em 2011 no presídio, enquanto que as penas de Oswaldo e Davi se extinguiram pelo cumprimento. Já Airton Bardelli, então gerente da madeireira da família Abagge, e Sérgio Cristofolini, vizinho e dono do imóvel em que Oswaldo morava, foram inocentados - mesmo assim, ambos também teriam sido torturados, conforme revelam as fitas.
Grupo Águia
As sessões de tortura teriam sido cometidas por policiais do Grupo Águia da Polícia Militar (PM), equipe criada poucos anos antes com a finalidade de combater assaltos a ônibus e desvios de cargas. A unidade, de nome oficial Ação de Grupo Unido de Inteligência e Ataque, era um braço do Setor de Inteligência da PM, a P2, departamento responsável por coletar informações para o planejamento de operações da corporação. Policiais da P2 normalmente atuam sem farda – por isso também são conhecidos por Serviço Reservado.
A participação do Grupo Águia na investigação do caso teve aval da Secretaria Estadual de Segurança Pública (Sesp), à época do primeiro mandato do governo Roberto Requião (MDB). Vale lembrar que, por determinação constitucional, o trabalho de investigação criminal cabe exclusivamente à polícia judiciária, no caso, a Polícia Civil. Na época, o Grupo Tigre, unidade de elite da Polícia Civil criada dois anos antes para investigar outro crime cujas ocorrências vinham crescendo no Paraná no começo dos anos 1990, o de sequestro, foi afastado do caso sob alegação de que tinha avançado pouco em três meses de apurações.
A transcrição editada das fitas consta em um dossiê montado pelo Grupo Águia em que os acusados confessam o crime. Porém, as versões na íntegra, que nunca foram incluídas nos autos do processo, apresentam falas dos acusados muito nervosos, ofegantes, sendo coagidos e até mesmo apelando para não serem mais agredidos. Além disso, as falas dos próprios policiais também indicam abusos. “Olha, menina, acho que vamos ter que continuar na nossa sessão porque você não está querendo falar, né?”, diz na gravação um dos policiais no interrogatório feito sem mandado judicial de Beatriz Abagge, que, diante da ameaça, concorda na gravação em “colaborar”. “’Entroxa’ a cabeça desse cara para baixo”, diz o policial ao interrogar Vicente de Paula, o ajudante no terreiro do pai de santo Oswaldo Marcineiro.
Nas gravações, um coisa chamou a atenção de Figueiredo Basto: a voz de uma mulher. "Nenhuma mulher fazia parte do Grupo Águia. Então agora queremos saber quem é essa mulher, que cometeu um ato inadmissível, de presenciar a tortura de outras duas mulheres", afirma o advogado das Abagge. Além disso, defende Figueiredo Basto, já havia indícios de tortura mesmo antes da revelação do conteúdo das fitas. "Na gravação de vídeo VHS das confissões que foram para os autos, o Davi está com um tampão de algodão no ouvido o que indicava tortura. Eu mostrei isso várias vezes. Como o processo poderia ter confiabilidade com aquela imagem?", questiona o advogado de defesa.
Ministério público
Sobre as gravações reveladas pelo jornalista Ivan Mizanzuk, o Ministério Público do Paraná (MP-PR), responsável pela acusação no processo, afirma em nota que "o conteúdo em áudio citado carece de prova de autenticidade e de contemporaneidade". O órgão afirma ainda que as gravações não foram submetidas à análise da Justiça mesmo tendo vindo à tona há pouco mais de um ano atrás no podcast. "Razão pela qual as gravações não têm valor como prova judicial. O MP-PR ressalta ainda que as condenações ocorridas em dois júris distintos - um em 2004 e outro em 2011 - não se deram exclusivamente com base nas confissões", conclui a nota.
Após o envio da nota oficial, o promotor que atuou no caso, Paulo Sérgio Markowicz, entrou em contato com a reportagem e disse que só teve acesso à gravação em março de 2020, quando foram publicados no podcast. "Nunca tivemos acesso a essas gravações, nem o Ministério Público e nem eu pessoalmente", defende-se o promotor, que atualmente ocupa um cargo administrativo no MP-PR, de secretário do Conselho Superior do órgão. "O trabalho que fiz foi com o material que tinha na época. Minha consciência está tranquila", aponta o promotor.
Markowicz também é enfático ao afirmar que nem ele, nem a equipe da promotoria que atuou no Caso Evandro jamais foram coniventes com tortura. "Atuei também no caso Tayná [adolescente de 14 anos que após desaparecer foi encontrada morta em Colombo, na grande Curitiba, em junho de 2013]. A primeira coisa que fiz após passar uma noite inteira interrogando os acusados desse caso foi requerer a liberdade deles porque havia sérios indícios de tortura", cita o promotor.
Markowicz informa que em março de 2020 comunicou em ofício a Promotoria de Justiça de Guaratuba da existência das fitas que indicam tortura para avaliar se deveriam ser anexadas aos autos do Caso Evandro. O comunicado foi feito em 13 de março de 2020, três dias após a gravação do episódio da série em que Markowicz ouve o conteúdo, mesma data em que as gravações foram divulgadas no podcast de Ivan Mizanzuk. "Depois soubemos que o promotor de Guaratuba encaminhou o arquivamento, alegando que o caso estava prescrito", explica Markowicz. Por lei, casos de homicídio prescrevem após 20 anos, idade que a morte do menino Evandro completou em 2012.
No episódio da série em que ouve as fitas, Markowicz não esconde a surpresa com o conteúdo e avalia como "prato cheio para a defesa" os indícios de tortura. "Sessão do quê? De cinema que não é”, reage o promotor ao trecho em que o policial diz que “vai ter que continuar a sessão” porque Beatriz Abbage não estava “colaborando”.
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