Delações e confissões firmadas em processos conduzidos pelo Ministério Público levaram a Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) ao controverso capítulo que expõe as vulnerabilidades do sistema político-judiciário com a inversão da lógica teórica de que a publicidade é a regra e o sigilo uma exceção. Na prática, o segredo de Justiça pode se tornar a norma vigente e manter questões democráticas sem respostas transparentes, como os motivos para a manutenção do deputado Ademar Traiano (PSD) na presidência da Alep, durante todo o ano de 2023, apesar da confissão de negociação e recebimento de propina.
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Em dezembro de 2022, Traiano e o então deputado estadual Plauto Miró (União) firmaram um Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) após terem admitido que receberam propina de R$ 100 mil para cada um dos parlamentares após a negociação realizada, no ano de 2012, com o Grupo Malucelli para renovação de contrato na prestação de serviços da TV Assembleia. Três anos depois, a delação premiada do empresário Vicente Malucelli revelou que Traiano pediu R$ 300 mil em propina, mas o valor foi reduzido e parcelado em duas vezes.
Professor de Direito Penal na Escola da Magistratura Federal do Paraná (Esmafe), Marcelo Lebre afirma que, a partir do Pacote Anticrime de 2019, a Justiça Consensual ganhou novas alternativas, entre elas, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), considerado pelo jurista um dos principais mecanismos junto com a delação premiada.
“No Pacote Anticrime, surgiu a discussão se haveria ou não a necessidade de confissão do delito no caso do ANPP. No projeto originário, até existia a possibilidade de deixar isso de fora. Por uma pressão política, boa parte pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, se tornou uma das condições para o acordo”, recorda. Além da confissão do delito, Lebre informa que, para homologação da Justiça, ainda é exigido que a infração não tenha sido praticada com violência, tenha pena mínima inferior a quatro anos, reparação de danos e renúncia de bens ilícitos.
Questionado sobre o uso do segredo de Justiça no acordo que envolve o deputado Ademar Traiano, o professor esclareceu que em nenhum momento o artigo que trata do ANPP no Código de Processo Penal delimita a necessidade de sigilo processual. “Se eu tenho uma cláusula expressa, a cláusula tem que ser seguida. Se isso não existe, automaticamente temos que fazer uma hermenêutica, uma interpretação que leva em conta as regras gerais que orientam os processos. A regra de qualquer processo, inclusive criminal, não é o sigilo", explica ele.
"A regra de tramitação é que os processos sejam públicos, especialmente quando existe interesse público no objeto de apreciação”.
Professor de Direito Penal na Escola da Magistratura Federal do Paraná (Esmafe), Marcelo Lebre
Ele faz a ressalva de que as partes podem pedir sigilo no processo, que passa pela análise do magistrado responsável. A Gazeta do Povo procurou o Ministério Público do Paraná (MP-PR), que afirma que o pedido de segredo de Justiça faz parte do acordo por meio de cláusula. Em nota, o MP-PR ainda informa que pediu a suspensão do sigilo, sem esclarecer se a solicitação foi realizada antes ou depois da crise na Assembleia Legislativa.
O conteúdo do ANPP só veio à tona após o deputado Renato Freitas (PT) anexar os termos do acordo em sua defesa por quebra de decoro, no Conselho de Ética, que avalia a conduta do parlamentar petista por chamar Traiano de “corrupto” durante bate-boca no plenário da Alep, no último mês de outubro.
No início de dezembro, a RPC, o G1 e o jornal Plural divulgaram reportagens sobre a confissão de recebimento de propina pelo presidente da Alep. Uma liminar de primeira instância censurou a imprensa paranaense, derrubada posteriormente pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR).
“A regra dos tribunais pátrios, falo com jurisprudência, é não decretar o sigilo, pois existe um interesse público em tomar conhecimento dos fatos que estão sendo apurados, especialmente quando o investigado é alguém que representa o Estado, como é o caso de cargos do Poder Legislativo ou Executivo. Em tese, existe o interesse público, especialmente quando o fato supostamente praticado, pois foi confesso, é um crime contra a administração pública”, comenta o professor de Direito Penal.
Segundo o Código de Processo Civil, as exceções são casos como divórcio e processos envolvendo menores. Já nos processos penais, o magistrado pode decretar o sigilo para preservar a intimidade, a vida privada, honra e imagem do ofendido, o que, conforme o jurista, respalda a cláusula constitucional que garante a não violação da intimidade. “Então, o juiz pode conjugar os dois dispositivos para decretar o sigilo processual”, explica Lebre.
Acordo mantém “Ficha Limpa” de Traiano apesar de confissão em sigilo
Pelos termos do acordo, Traiano e Plauto Miró concordaram em devolver R$ 187 mil em uma única parcela e não serão processados na Justiça. “Essa é uma das diferenças entre o acordo de delação premiada e o acordo de não persecução criminal. Por si só, a delação premiada não evita o processo, pois via de regra, a pessoa é processada, condenada e usufrui dos benefícios homologados no acordo. Já o ANPP tem como objetivo evitar a persecução criminal, tanto que é feito no início para evitar a continuidade do processo. Uma vez homologado e cumprido as exigências pelo acusado, ele deixa de ser processado e mantém os status primários de bons antecedentes”, explica.
Ou seja, à princípio, Traiano deve manter até a “Ficha Limpa” sem perder os direitos políticos para concorrer em uma nova eleição, apesar da confissão de ter praticado um ato de corrupção. Assessor jurídico do deputado estadual Fabio Oliveira (Podemos) - um dos parlamentares que cobram a saída de Traiano da presidência da Casa, o advogado Pedro Henrique Planas ressalta que, se adotado, o sigilo deve ser retirado quando o objetivo é alcançado.
“Infelizmente não é sempre assim que ocorre. Por vezes, o sigilo acaba sendo utilizado com o propósito escuso de acobertar fatos vexatórios, ainda mais quando envolvem pessoas influentes e casos de corrupção praticada por gestores públicos”, opina.
Planas recorda que instrumentos como o ANPP, Termo de Ajustamento de Conduta, delação premiada e acordo de leniência podem garantir a eficiência dos processos de investigação com resultado punitivo ou preventivo da infração, como na operação Lava Jato. “Porém, ainda há muito a ser melhorado sobre esse assunto que é, de certa forma, recente em nosso ordenamento jurídico. Seria importante, por exemplo, a instituição da obrigatoriedade de ampla divulgação do teor desses acordos e a definição de critérios objetivos para que a punição seja realmente proporcional ao dano causado pelo infrator”, comenta o advogado.
Em nota, Traiano respondeu, por meio da assessoria de imprensa, que não há nenhuma investigação em andamento sobre os documentos divulgados, que estão em sigilo e lembrou que o acordo já foi homologado pelo Tribunal de Justiça do Paraná no ano passado.
O deputado considera que o vazamento do documento foi ilegal, conforme o entendimento do Ministério Público e da própria Justiça. “Apesar de uma decisão judicial ter liberado a imprensa de divulgar sobre os documentos já vazados, o sigilo dos atos processuais persiste, impondo-se que as devidas explicações sejam dadas apenas no momento oportuno”, declara Traiano ao comentar o sigilo.
Uso de software espião pelo Governo do Paraná segue sem respostas
A contratação pelo governo paranaense do “software espião” de origem israelense, chamado de First Mile, por R$ 6,2 milhões em 2019, com dispensa de licitação, levantou suspeitas sobre o uso da ferramenta pela Diretoria de Inteligência da Controladoria Geral do Estado (CGE) para monitoramento de telefones, que seria uma versão mais moderna dos “grampos”.
Após operação da Polícia Federal contra servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), em outubro deste ano, foi revelado que o Paraná estava entre os estados que contrataram o software, sob a justificativa do uso do mecanismo de vigilância apenas pela Secretaria da Segurança Pública do estado. O caso deve continuar sem esclarecimentos, seguindo a "exceção-regra" do sigilo.
O Ministério Público do Paraná arquivou o pedido de investigação feito pelos deputados de oposição ao governo Ratinho Junior (PSD) sob a justificativa de “prova robusta” de que não houve acesso por parte de servidores da CGE aos sistema de caráter restrito e exclusivo das forças de segurança do estado.
A Secretaria da Segurança Pública do Paraná negou acesso aos dados solicitados pela Gazeta do Povo, via Lei de Acesso à Informação (LAI), sobre o número de vezes em que o “software espião” foi utilizado em investigações no período contratual com autorização da Justiça. A justificativa: dados sigilosos que “comprometem as atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão à criminalidade.”
Cronologia do caso envolvendo Ademar Traiano (PSD)
A TV Icaraí, do grupo J. Malucelli, vence licitação para produção de conteúdo para a TV Assembleia.
Segundo Vicente Malucelli, à época responsável pela Icaraí, o pedido de propina de R$ 300 mil foi feito pelo deputado Ademar Traiano. Plauto Miró estava presente na reunião.
J. Malucelli é mencionado em desdobramento da Lava Jato que trata de desvios em Fundos de Investimentos da Caixa Econômica Federal.
A J. Malucelli é implicada nas operações Integração, Buona Fortuna e Piloto. Em setembro, na operação Rádio Patrulha, do Ministério Público Estadual, o empresário Joel Malucelli é preso.
Empresas do grupo J. Malucelli, incluindo a TV Icaraí, fecham acordo de leniência com o MPF e o MP-PR, confessando ter participado de atos ilícitos.
Com o avanço das investigações, Traiano e Miró assinam um acordo em que admitem ter pedido e recebido propina. Eles devem devolver R$ 187 mil como reparação.
Em outubro de 2023, Traiano move uma representação contra o deputado Renato Freitas (PT), após ter sido chamado de "corrupto" em uma sessão plenária.
Nas alegações finais do processo no Conselho de Ética da Alep, a defesa de Freitas inclui trechos do processo que contêm a delação de Malucelli. O acordo com a confissão do presidente da Alep vem à tona.
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