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Evidências científicas são restritas e custeio com dinheiro público é questionado por pesquisador
Evidências científicas são restritas e custeio com dinheiro público é questionado por pesquisador| Foto: Kimzy Nanney/Unsplash

Com cerca de 36 mil habitantes, a cidade de Mandaguari, localizada no norte do Paraná, deve começar o fornecimento de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabidiol (THC), medicamentos à base de cannabis, nos postos de saúde até o final deste ano.

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Segundo a lei municipal aprovada pelo Legislativo e sancionada pela prefeita Ivonéia Furtado (CDN), em meados de maio, o atendimento aos pacientes com prescrição médica será feito pela rede municipal de saúde, que tem prazo de 180 dias para contratação de fornecedores e início da distribuição dos medicamentos aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) com derivados da cannabis nas Unidades Básicas de Saúde (UBS).

De acordo com a prefeita, a previsão é que os medicamentos estejam disponíveis até novembro nos postos de saúde para fornecimento de canabidiol após a contratação das associações fornecedoras dos óleos com CBD e THC, por meio de processos licitatórios.

Alvo de processos na Justiça com decisões favoráveis aos pacientes, o fornecimento dos medicamentos na rede pública também foi aprovado pela Assembleia Legislativa do Paraná, mas a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) respondeu à Gazeta do Povo que “está realizando estudos para a viabilidade técnica de fornecimento de produtos ou medicamentos à base de canabidiol ou tetrahidrocanabinol.”

Apesar dos indicativos da distribuição dos produtos nas farmácias do estado ou de municípios, custeados com dinheiro público, pesquisas científicas não apontam evidências da eficácia dos derivados da cannabis na maioria dos tratamentos, entre eles, o Transtorno do Espectro Autista (TEA).

De outro lado, a prefeita de Mandaguari afirma que o relato de pais e familiares mostra a evolução das crianças autistas que são tratadas com o medicamento, o que teria motivado a lei municipal. “O autismo tem crescido muito, não só na nossa cidade, como no país todo. Agora, os neurologistas estão com uma visão mais humanitária, mais atenta para o autismo. Então, a gente acredita que esse canabidiol, pelo relato dos pais e das famílias, tem melhorado bastante a vida (das crianças)”, opina.

Ela informou que mais de 20 prescrições para uso medicinal foram recebidas pela farmácia da prefeitura, que também pretende fazer o atendimento médico com receita para fornecimento de canabidiol e tetrahidrocanabidiol pela rede municipal ou pelo Consórcio Intermunicipal da Região de Maringá, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).

Segundo Furtado, as cotações iniciais da despesa aos cofres públicos apontam que a unidade de 15 ml do medicamento custará de R$ 310,48 para o frasco de 20 mg/ml até R$ 2.772, 22 para o frasco de 200 mg/ml. Questionada sobre as evidências científicas para uso do CBD e TCH, principalmente nos casos de autismo, ela respondeu que é preciso ter cautela na compra para garantir “qualidade e segurança” dos medicamentos, mas reforçou a tese de melhora do quadro das crianças dentro do espectro.

“Na Anvisa, está autorizado somente para epilepsia, mas os relatos do pais (de crianças autistas) é uma coisa assim, evidente. Como mãe e avó, isso comove a gente. Uma criança faz aqueles movimentos repetitivos, o dia inteiro, e com o canabidiol ou tetrahidrocanabidiol, teve uma melhora significativa”, respondeu.

"Uma farmácia dentro de um medicamento só", defende o vereador Chiquinho
"Uma farmácia dentro de um medicamento só", defende o vereador Chiquinho (PSD)| Vanessa Herrmann/Câmara de Mandaguari/Divulgação

Autor do projeto, o vereador Sydney da Silva (PSD), mais conhecido como Chiquinho, argumenta que uma audiência pública foi realizada com a presença de representantes da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann) e médicos, que defendem a prescrição para casos de fibromialgia, parkinson, ansiedade e esquizofrenia, além do TEA, de acordo com o parlamentar, que batizou o projeto de “Lei Pedro Henrique”, em homenagem a um menino autista de 10 anos, que morreu em um acidente doméstico, em Mandaguari, no ano passado, e fazia uso do canabidiol.

“Tem essa questão do preconceito por ser extraído da flor da maconha, mas é uma farmácia dentro de um medicamento só”, justifica o vereador. “O projeto é baseado na Lei Pétala, que foi promulgada pela Assembleia Legislativa. Agora, temos a primeira lei municipal do estado do Paraná e do Sul do Brasil”, acrescentou.

Ele ainda argumenta que os pacientes estão procurando o Ministério Público (MP) para que o fornecimento do canabidiol seja custeado pelo poder público, com pagamento via rede de saúde municipal ou estadual, por meio das decisões judiciais. “É um direito do cidadão ter acesso à saúde. As pessoas que estão entrando, estão ganhando o medicamento na Justiça.”

Dinheiro público pode custear tratamento sem comprovação

O coordenador do Setor de Distúrbios do Movimento e Neurologia Comportamental do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, o médico Vitor Tumas, classifica como “frisson inicial” o uso das substâncias derivadas da cannabis. Com evidências científicas restritas, o acompanhamento do pesquisador mostra que a maioria dos pacientes abandonam os tratamentos. A principal suspeita é o alto custo do medicamento com pouco resultado no quadro de saúde.

“Quando o pessoal vê a cannabis, uma droga proibida, que os laboratórios proíbem 'pois não querem curar o câncer e outras doenças', parece que a cannabis vai curar todo mundo. Então, existe uma expectativa absurda, mas depois (o paciente) vê que a realidade é outra. Na verdade, não é tudo isso”, comentou Tumas, que foi moderador da mesa redonda “Cannabis medicinal: uma visão internacional sobre seu papel no tratamento de distúrbios neurológicos e psiquiátricos” durante o Congresso Brasileiro “Brain, Behavior and Emotions, realizado em Florianópolis (SC) no mês de junho.

Ele lembra que a posição formal das entidades médicas e científicas é que não existem evidências para a maioria das indicações mas, na prática, as pessoas procuram a prescrição médica por causa de “notícias promissoras”, sendo que o tratamento é feito no modelo “tentativa e erro”.

“Não sou radical ao ponto de dizer que se ‘não tem evidência, então não vamos experimentar’, mas o problema é o governo pagar esse tratamento. É uma questão que precisa ser discutida, pois os produtos, razoavelmente confiáveis, não são baratos e o governo vai pagar a conta. O paciente vai entrar na Justiça para custear o tratamento caro, que eventualmente outro medicamento mais barato resolveria”, avalia. “Além disso, se liberar qualquer medicamento com base no que o paciente falou, isso pode virar uma bagunça”, acrescentou.

Tumas ressalta que as evidências científicas apontam a eficácia do canabidiol no tratamento de epilepsia, o uso de extratos da cannabis para dores e náuseas, especialmente em pacientes com câncer terminal, além de pequena melhora em quadros de rigidez e dor por esclerose múltipla com espasticidade na combinação de THC e CBD. “No caso da epilepsia, apenas para algumas formas infantis muito específicas. Não é para qualquer tipo de epilepsia. Mesmo assim, é introduzida como uma droga a mais, e não exclusivamente”, acrescentou.

Questionado sobre os estudos que defendem outros tratamentos com os derivados da cannabis, o médico respondeu que os laboratórios promovem pesquisas com base em respostas pessoais e subjetivas dos pacientes que fazem uso do medicamento. “Ou seja, é a opinião da pessoa. Só que isso é uma coisa momentânea, ninguém olha se tem o efeito placebo, ninguém olha se existe algum interesse em usar a cannabis, ninguém olha se a longo prazo isso persiste”, critica.

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