A defesa da família Abbage entrou segunda-feira (6) no Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) com pedido de revisão processual para anular o julgamento da morte do menino Evandro Ramos Caetano em 1992, em Guaratuba, Litoral do Paraná. O caso veio à tona quase 30 anos depois quando o podcast Projetos Humanos - O Caso Evandro, do jornalista e professor Ivan Mizanzuk, revelou em 2020 gravações de interrogatórios que indicam tortura dos acusados. Em maio desse ano, o Caso Evandro virou série documental na plataforma Globo Play, quando chegou ao topo dos assuntos mais comentados nas mídias sociais.
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O pedido é para que sejam inocentados não só Beatgriz Abbage mas também os outros condenados pelo crime que ficou conhecido por "Bruxas de Guaratuba" - a acusação era de que a criança teria sido morta em um ritual de magia negra. O processo de absolvição se estende ao pai de santo Oswaldo Marcineiro, ao artesão Davi dos Santos Soares e ao pintor Vicente de Paula - que faleceu de câncer em 2011 no presídio -, condenados por executarem o menino.
Beatriz e a mãe, Celina Abagge, filha e esposa do então prefeito de Guaratuba, Aldo Abagge, foram acusadas de serem as mandantes do assassinato. Celina foi absolvida nos três julgamentos e teve acusação prescrita por ser maior de 70 anos. Outros dois acusados, Airton Bardelli, então gerente da madeireira de propriedade dos Abagge, e Sérgio Cristofolini, vizinho e dono do imóvel onde Marcineiro morava na época, já haviam sido inocentados no segundo dos três julgamentos do caso em 2004.
"A revisão se baseia na produção de provas ilícitas feitas durante a investigação, com base nas revelações da gravação na íntegra dos interrogatórios feitos sem mandatos judiciais", explica o advogado Antonio Augusto de Figueiredo Basto, que deu entrada da revisão no TJ-PR e que também vai levar o caso à Corte Internacional de Direitos Humanos.
"Além da absolvição, pedimos reparação de danos morais, existenciais e materiais de todos os acusados e torturadas na investigação. O estigma com o qual essas pessoas viveram, de serem assassinas de uma criança, foi absurdo", complementa Figueiredo Basto.
Gravações periciadas
A defesa incluiu dois laudos na petição de revisão que apontam não só indícios de tortura como que os áudios dos interrogatórios apresentados à Justiça foram editados. Um laudo é parecer psicopatológico sobre as declarações dos acusados na gravação original dos interrogatórios e o outro é um parecer fonético.
"Analisando os depoimentos de Oswaldo Marcineiro e Beatriz Abagge pode-se verificar que o interlocutor [policial que conduz o interrogatório] tem uma postura carregada de preconceitos e críticas, selecionando informações de forma a preencher as lacunas das narrativas conforme os seus interesses, descartando dados divergentes, obrigando os depoentes a responderem conforme seus interesses, direcionando as respostas por diversas vezes", afirma a perícia assinada pelo médico forense e advogado Talvane Maris de Moraes, membro titular da Academia Nacional de Medicina Legal e professor de psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"A verdade foi criada a partir de dados sugeridos pelo próprio interrogador, gerando o que a psiquiatria forense denomina efeito 'big data', quando o inquiridor, a partir de dados que dispõe, induz o depoente a confirmá-los, em uma assimilação à versão que lhe é conveniente", prossegue a perícia.
Já o parecer fonético afirma que as gravações reveladas no podcast e no documentário de Mizanzuk são originais e estão na íntegra. A perícia dos áudios também aponta para torturas durante as gravações.
"Observam-se falas e eventos sonoros que evidenciaram a prática de violência física, o que estava compatível com a respiração ofegantes, a afetação psicológica e o choro dos interlocutores", conclui o parecer assinado pelo engenheiro eletrônico e advogado Antonio César Morant Braid, perito criminal do Departamento de Polícia Técnica da Secretaria Estadual de Segurança Pública da Bahia, referência nacional em fonética forense.
O caso
O corpo de Evandro Ramos Caetano, então com 6 anos, foi encontrado sem as mãos, vísceras e cabelos em abril de 1992, desencadeando uma sucessão de erros na investigação. Gravações mostradas no podcast e na série documental da Globo Play apontam que os acusados do caso teriam confessado o crime mediante tortura.
As sessões de tortura teriam sido cometidas por policiais do Grupo Águia da Polícia Militar (PM), equipe criada poucos anos antes com a finalidade de combater assaltos a ônibus e desvios de cargas. A unidade, de nome oficial Ação de Grupo Unido de Inteligência e Ataque, era um braço do Setor de Inteligência da PM, a P2, departamento responsável por coletar informações para o planejamento de operações da corporação. Policiais da P2 normalmente atuam sem farda – por isso também são conhecidos por Serviço Reservado.
A participação do Grupo Águia na investigação do caso teve aval da Secretaria Estadual de Segurança Pública (Sesp), à época do primeiro mandato do governo Roberto Requião, que em 2021 afirmou condenar tortura e que não tinha maiores informações da investigação. Vale lembrar que, por determinação constitucional, o trabalho de investigação criminal cabe exclusivamente à polícia judiciária, no caso, a Polícia Civil.
Na época, o Grupo Tigre, unidade de elite da Polícia Civil criada dois anos antes, foi afastado do caso sob alegação de que tinha avançado pouco em três meses de apurações.
A transcrição editada das fitas consta no dossiê montado pelo Grupo Águia em que os acusados confessam o crime. Porém, as versões na íntegra, que nunca foram incluídas nos autos do processo, apresentam falas dos acusados muito nervosos, ofegantes, sendo coagidos e até mesmo apelando para não serem mais agredidos.
As falas dos próprios policiais também indicam abusos. “Olha, menina, acho que vamos ter que continuar na nossa sessão porque você não está querendo falar, né?”, diz na gravação um dos policiais militares no interrogatório feito sem mandado judicial de Beatriz Abagge. Na sequência do áudio, Beatriz concorda em “colaborar”. “’Entroxa’ a cabeça desse cara para baixo”, diz o policial ao interrogar Vicente de Paula, o ajudante no terreiro do pai de santo Oswaldo Marcineiro.
Ministério público
Em entrevista à Gazeta do Povo em junho, o promotor do caso, Paulo Sérgio Markowicz, foi enfático ao afirmar que nem ele, nem a equipe da promotoria que atuou no processo jamais foram coniventes com tortura.
Markowicz enviou ofício em março de 2020 à Promotoria de Justiça de Guaratuba comunicando a existência das gravações reveladas por Mizanzuk para que fosse avaliada a possibilidade de serem anexadas aos autos do Caso Evandro. Porém, a Promotoria de Guaratuba arquivou o processo, sob a alegação de que o caso havia prescrito. Por lei, casos de homicídio prescrevem após 20 anos, idade que a morte do menino Evandro completou em 2012.
No episódio da série em que ouve as fitas, Markowicz não esconde a surpresa com o conteúdo e avalia como "prato cheio para a defesa" os indícios de tortura. "Sessão do quê? De cinema que não é”, reage o promotor ao trecho em que o policial diz que “vai ter que continuar a sessão” porque Beatriz Abbage não estava “colaborando”.
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