O contrabando de gado da Argentina pela fronteira com o Brasil - nos estados de Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul - voltou a acender uma luz de alerta. Segundo identificação da Polícia Federal (PF), o crime está em expansão.
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A PF observou que, mesmo com os preços dos produtos aumentando na Argentina desde que a nova política econômica do presidente Javier Milei entrou em vigor, o fluxo ilegal de animais em rotas clandestinas tem aumentado.
A situação detectada pela PF mostra que o que já era expressivo está ganhando volume. O crime envolve mais do que preços: está relacionada à qualidade genética do animal, com gado melhorado, principalmente em raças europeias.
Além dos aspectos criminais, a entrada desses rebanhos preocupa por questões ligadas à sanidade, colocando em risco o mercado bilionário das carnes no Brasil, que é o maior exportador mundial das proteínas. No último ano, as vendas desses produtos a outros países somaram mais de US$ 23 bilhões, segundo a Secretaria de Comércio Exterior, sendo US$ 9,8 bilhões provenientes da avicultura, US$ 2,8 bilhões da suinocultura e US$ 10,8 bilhões da bovinocultura.
Sem certificação de origem e sem passar por controles aduaneiros de fiscalização sanitária, cargas colocam em risco status que se levou décadas para alcançar, como no caso de Paraná e Rio Grande do Sul.
Os dois estados obtiveram certificação e reconhecimento de áreas livres de febre aftosa sem vacinação na Organização Mundial de Saúde Animal somente no ano de 2021. Santa Catarina tem o certificado desde 2007.
A certificação é essencial para abertura, reabertura ou manutenção de mercados que, altamente exigentes com questões sanitárias, não adquirem proteínas vindas de regiões com vacinação contra a doença, por exemplo. A entrada de animais de locais que ainda usam a imunização, como é o caso da Argentina, pode fazer o status desses estados recuar.
As rotas do contrabando de gado com fazendas lado a lado na fronteira
Ainda segundo a PF, a principal rota para o contrabando de gado está entre Santo Antônio do Sudoeste (PR) e Dionísio Cerqueira (SC), cidades que ficam divisa entre os dois estados e coladas à fronteira com a Argentina. Com trechos em que a travessia é facilmente feita a pé, contrabandistas se aproveitam da falta ou precariedade da fiscalização nos postos avançados de controle sanitário para trafegar com caminhões lotados de animais, principalmente à noite.
Nas rotas clandestinas, os carregamentos circulam por estradas vicinais ou rurais até chegarem à propriedade ou abatedouros, geralmente não muito distantes da fronteira. Algumas delas, lado a lado, entre o território dos dois países.
Segundo o presidente do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Agricultura (Conseagri) e secretário de Agricultura e Abastecimento do Paraná, Norberto Ortigara, o risco sanitário pode custar bilhões aos estados da Região Sul.
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul respondem por quase a totalidade das exportações da carne suína brasileira: mais de 1,1 milhão de toneladas de um total de 1,2 milhão exportadas em 2023. Os três estados também acomodam 60% da avicultura comercial brasileira. “O contrabando de gado coloca a produção, a economia e o mercado em risco sanitário”, alerta.
Para Ortigara, a cautela vai além porque os diagnósticos transfronteiriços indicam que, além do gado, há aumento no contrabando de carnes, agrotóxicos, alho, cebola e alimentos em geral, situação que pode colocar o cultivo em risco em diversas frentes, com patologias típicas de outras culturas.
“Nossa maior preocupação é pelo risco sanitário; quanto ao descaminho e contrabando é uma contravenção penal que precisa ficar com as autoridades deste segmento. A Sesp [Secretaria da Segurança Pública do Paraná] tem dado apoio nos aspectos relacionados à segurança, mas nas questões sanitárias há uma preocupação grande”, reforça.
Cargas lacradas e alerta para falsificação de documentos
Para impedir que animais entrem no Brasil e depois trafeguem com documentos falsos, a Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar) tem utilizado mecanismos especiais para emissão das chamadas Guias de Trânsito Animal (GTAs) em áreas de risco, como no caso da fronteira ou no limite entre estados com status diferentes. Entre as exigências está o lacre de cargas.
“Isso para não caracterizar que alguém traga os animais da Argentina, passe a criar os bezerros no sudoeste do Paraná, por exemplo, deixe-os em descanso para depois de um tempo levá-los a outras regiões, como se tivessem nascido ali, 'esquentando' assim os estoques”, considera Ortigara.
Segundo a Adapar, a carga em transporte deve estar lacrada pelo serviço veterinário oficial de origem e os números dos lacres devem constar no campo destinado a observações da GTA.
Meio século para conquistar área livre e o risco de perdê-la
O avanço do contrabando de gado vivo e também de alimentos da Argentina para o Brasil traz receio ao setor produtivo. A Federação da Agricultura do Estado do Paraná (Faep) alerta que nas últimas cinco décadas tem trabalhado para obtenção da área livre de aftosa sem vacinação e que a vigilância e o enfrentamento precisam ser assíduos, sob risco de se perder a certificação.
“A Faep apoia as ações de fiscalização e controle da movimentação de animais, não somente entre países, mas também entre os estados. Nas últimas cinco décadas, a entidade trabalhou firmemente para o reconhecimento do Paraná como área livre de febre aftosa sem vacinação. E, dentro do processo de manutenção desse status - que vai abrir novos mercados que pagam mais pela carne paranaense - é preciso vigilância ativa e constante para mostrar que o Paraná tem uma sanidade robusta", considera o presidente da entidade, Ágide Meneguette.
Em uma operação realizada há pouco mais de um ano pela PF foi identificado que contrabandistas estavam falsificando documentos da origem dos animais e para preenchimento das GTAs, sem a qual o transporte é vetado. Como há propriedades brasileiras e argentinas na fronteira seca, produtores se utilizavam da tática de afirmar que animais teriam nascido do lado brasileiro, quando efetivamente tinham vindo do país vizinho.
Naquela operação, um produtor declarou à Adapar que 50 animais teriam nascido ali, todos machos. Segundo a PF, não havia registro na fazenda, em quase meia década, do nascimento de um único animal fêmea, apesar de metade do rebanho ser desse gênero.
Envolvidos com esses crimes podem responder por contrabando, associação criminosa, falsidade ideológica e infração de medida sanitária preventiva, com penas que podem somar 18 anos de prisão. Quando um carregamento de gado irregular é apreendido, os animais são enviados para o abate, tudo é destruído e descartado.
Compra de animais só de estados com o mesmo status sanitário
Os estados brasileiros só podem adquirir animais de locais que tenham o mesmo status sanitário e com a devida certificação exigida. No caso dos estados do Sul, que são livres de aftosa sem vacinação, a aquisição pode ser feita de estados com o mesmo status sanitários, incluindo na lista apenas Rondônia e Acre.
O Brasil tem o segundo maior rebanho bovino do mundo, com 234,4 milhões de animais. Fica atrás da Índia, onde existem cerca de 300 milhões de cabeças.
Segundo o IBGE, apesar de dominarem a suinocultura e a avicultura, os três estados do Sul concentram 10% do rebanho nacional bovino (24,3 milhões de cabeças), mas o status sanitário afeta toda a cadeia de proteína animal.
Entre os exemplos estão mercados como Japão e Coreia do Sul, que não adquirem a carne suína do Paraná porque até poucos anos o estado era livre de aftosa, mas com vacinação. “A grande maioria dos produtores segue as regras, obedece as normas e faz tudo de forma correta, mas o alerta fica com os que desrespeitam as regras e colocam as condições sanitárias em risco”, avalia a Adapar.
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), responsável pelos postos de controle e fiscalização do Serviço de Inspeção Federal (SIF) em regiões de fronteiras, foi procurado pela Gazeta do Povo, mas até a publicação desta reportagem não se manifestou.
Na página oficial em que trata de produtos de origem animal, o Mapa considera que a autorização à importação só pode ser feita quando os produtos procederem de países cujo sistema de inspeção sanitária foi avaliado ou reconhecido como equivalente pelo Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa); vierem de estabelecimentos habilitados à exportação para o Brasil; estiverem previamente registrados pelo Dipoa; estiverem rotulados de acordo com a legislação específica e vierem acompanhados de certificado sanitário expedido por autoridade competente do país de origem, nos termos acordados bilateralmente.
O setor produtivo, no entanto, tem alertado que a falta de profissionais do SIF tem prejudicado, além da fiscalização em regiões de fronteira, a produção do agro em plantas industriais por todo o Brasil.
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