Em agosto deste ano, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vedou a atuação da guarda municipal como força policial. A decisão não tem caráter de repercussão geral, mas na prática pode ajudar a balizar o trabalho das Guardas Municipais, criadas pela Constituição de 1988 e que em muitos municípios acabam atuando fora de suas atribuições originais.
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O entendimento do colegiado foi de que a guarda municipal, por não estar entre os órgãos de segurança pública previstos pela Constituição Federal, não pode exercer atribuições das polícias civis e militares. Para a Sexta Turma do STJ, a atuação das guardas deve se limitar à proteção de bens, serviços e instalações dos municípios.
Para o cientista social e professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Cezar Bueno de Lima, a decisão, apesar de tardia, veio em boa hora. Segundo ele, a falta de uma regulamentação específica sobre a atuação das Guardas Municipais levou à militarização das corporações no Paraná, algo que pode agora ser revisto e reavaliado após a decisão do STJ.
Confira a entrevista:
Gazeta do Povo: Esta não é uma decisão com caráter de repercussão geral. Mesmo assim, ela pode ter alguma influência na forma de atuação das Guardas Municipais no Paraná?
Cezar Lima: Do ponto de vista de uma construção de uma sociedade democrática e da divisão das atribuições de poder e do papel de monopólio da violência nas mãos do Estado, esta decisão é importante para que possamos discutir até que ponto a sociedade quer militarizar todos os espaços de sua própria vida. Se falta segurança no município, ou mesmo no Estado, isso é papel da União. Afinal de contas, a União recolhe quase 35% do PIB da sociedade na forma de impostos, e dentro das contrapartidas a essa arrecadação está a oferta de segurança pública. Isso é papel exclusivo do Estado, e não dos municípios. Esse é um ponto importante, ainda que demorado. Isso já deveria ter sido delimitado, o papel das forças de segurança. As Guardas Municipais não podem ter papel de polícia. O papel de polícia, por óbvio, é da Polícia, seja Militar, Civil, Federal, Rodoviária Estadual ou Federal. Não é atribuição ou incumbência dos municípios terem uma força policial na forma de Guarda Municipal, conforme o que está preconizado na constituição.
Gazeta do Povo: Quais seriam então as ações indicadas aos municípios para garantir mais segurança aos cidadãos?
Cezar Lima: Temos que delimitar até que ponto os municípios terão que assumir atribuições da União. Isso sem ter a contrapartida de recursos para essa finalidade. Ao nível dos municípios, as pessoas estão carentes de educação, saúde, moradia, outras coisas. Essa atribuição da Polícia, do controle da segurança e da pacificação, pertence à União. Se a União não está fazendo isso, cabe aos prefeitos, governadores de estados e à sociedade civil organizada cobrarem permanentemente a União neste sentido. As atribuições dos municípios já são as maiores. Todos nós vivemos nos municípios, não nas esplanadas dos ministérios, nem nas assembleias legislativas. Os municípios, a partir da Constituição de 1988, já tiveram aumentadas em muito as suas atribuições. E cada atribuição que se desloca da União para o município deveria significar recursos adicionais para o estado distribuir para esses municípios. Esse papel da segurança pública está aí para ser discutido, o momento é bastante oportuno. Qual é o papel da União nesse sentido? Do ponto de vista real, cada vez mais os municípios têm sido levados a substituir o papel que é preponderantemente do Estado.
Gazeta do Povo: No Paraná temos alguns municípios que armaram suas Guardas Municipais com fuzis, como é o caso de Arapongas, Curitiba, Campina Grande do Sul e São José dos Pinhais. Na sua opinião, este tipo de armamento é o mais adequado para a atuação das Guardas Municipais?
Cezar Lima: As Guardas Municipais têm um papel de assegurar bens e instalações do município, e não papel de polícia. Não cabe às Guardas Municipais prender gente por tráfico de drogas, isso é desvio de função. Isso é papel da Polícia Civil, da Militar, e não das Guardas Municipais. Afinal de contas, essas guardas devem ter um papel de prevenção e fiscalização quanto ao patrimônio municipal. É um trabalho mais preventivo, pedagógico. Não cabe a elas usurpar funções genuinamente da Polícia Civil, Militar ou quaisquer outras. Sabemos por meio de pesquisas e estudos de várias áreas que nos mostram, de forma estatística, que a violência gera violência. A intenção é pacificar a sociedade? Então o caminho é a prevenção à violência. Esse processo feroz de militarização vai contribuir para que seja perpetuada uma perspectiva de guerra dentro dessa sociedade. Uma vez que uma pessoa está armada, e a própria sociedade está sendo armada como um todo, qualquer coisa mínima pode resultar na externalização de atos de violência. E quando a pessoa está armada, em casos em que houver a mínima, mesmo que suposta, sensação de insegurança, pode-se usar a violência como primeiro recurso, e não como último.
Consórcio de Guardas Municipais da RMC aponta que decisão do STJ não é definitiva
A Gazeta do Povo solicitou à Secretaria Estadual de Segurança Pública uma entrevista com Wagner Mesquita, titular da pasta. O pedido, porém, não foi atendido sob a justificativa de falta de agenda do secretário.
Em nota encaminhada à redação, o Consórcio das Guardas Municipais da Região Metropolitana de Curitiba (Coin) aponta que a decisão tomada pelo STJ não é definitiva, e que caberá ao Supremo Tribunal Federal (STF) julgar recurso apresentado pelo Ministério Público de São Paulo e dar a última palavra sobre as funções das Guardas Municipais trazidas no texto constitucional.
Na nota, o consórcio afirma também que há várias decisões do STF no sentido de reconhecer como válidas prisões em flagrante feitas por agentes de Guardas Municipais “por se tratar de ato permitido a qualquer do povo, nos termos do art. 301 do Código de Processo Penal”.
Confira a íntegra da nota do Consórcio das Guardas Municipais da Região Metropolitana de Curitiba (Coin)
O Consórcio das Guardas Municipais da Região Metropolitana de Curitiba (COIN), que engloba as guardas de Curitiba, Campo Largo, São José dos Pinhais, Araucária, Pinhais, Mandirituba, Fazenda Rio Grande, Colombo, Quatro Barras e Campina Grande do Sul, manifesta-se no sentido de reafirmar a competência das guardas municipais em matéria de segurança pública, no estrito cumprimento dos deveres previstos na Lei Federal n.º 13.022/14 (Estatuto Geral da Guarda), em prol da manutenção da ordem pública e na prevenção e enfrentamento à criminalidade, como órgãos previstos expressamente no Sistema Único de Segurança Pública, conforme artigo 9º, da Lei Federal 13.675/18.
Cumpre ainda esclarecer que a decisão da 6ª Turma do STJ tem efeito restrito ao caso concreto de operação realizada por guardas municipais de São Paulo e não é definitiva, já que o Ministério Público de São Paulo recorreu ao Supremo Tribunal Federal, a quem compete dar a última palavra sobre a interpretação adequada do artigo 144, §8º, da CF, que trata das competências das Guardas Municipais.
O STF já julgou vários Habeas Corpus, compreendendo que não há ilegalidade na prisão em flagrante efetuada pela Guarda Municipal em casos de tráfico de drogas, ainda que não esteja inserida expressamente no rol das suas atribuições constitucionais (§ 8º do art. 144 da Constituição da República), por se tratar de ato permitido a qualquer do povo, nos termos do art. 301 do Código de Processo Penal. Inclusive em casos envolvendo atuação de guardas municipais de São Paulo, o STF já afirmou a possibilidade de integrantes da Guarda realizarem prisão em flagrante delito por tráfico de drogas em razão do recebimento de denúncia anônima.
O ministro do STF, Alexandre de Moraes, ao votar no RECURSO EXTRAORDINÁRIO n.º 846.854/São Paulo, já firmou o entendimento de que: “As Guardas Municipais são previstas constitucionalmente no artigo 144, do Capítulo III, Título V (Da segurança pública), portanto, cumprem papel nas atividades estatais de segurança pública, conforme expressa previsão constitucional e regulamentação legal, desempenhando função pública essencial à manutenção da ordem pública, da paz social e da incolumidade das pessoas e do patrimônio público, em especial de bens, serviços e instalações do Município.”
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