Minha avó não era nenhuma personalidade paranaense, tampouco gaúcha. Mas são poucos os amigos e conhecidos de seus familiares que não ouviram uma das histórias que envolviam a Dorvalina. Começando pela sua data de nascimento. Ela é daquela leva de pessoas em que o pai demorava a ir registrar no cartório e que, quando ia, já tinha acumulado mais alguns filhos. Assim, a Dorvalina nascida no dia 17 de novembro de 1931, na cidade de São Silvestre, no Rio Grande do Sul, só foi registrada três meses depois.
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A filha mais animada de uma família com 10 irmãos cresceu ajudando na lida da roça. Do que nos contava, era companheira fiel do pai, Catharino, que a chamava de Beta (apelido que ela nunca gostou). E ele gostava de levá-la sempre junto, porque ela ia cantando pelo caminho e dando risada. Esse companheirismo, porém, causava ciúme nos irmãos e o barulho que ela fazia pela casa, rendeu uma cicatriz na testa, depois de uma briga com um irmão que ficou nervoso. Casou-se em 1953 e as três filhas, Benilde, Neusa e Claudia, nasceram também no Rio Grande do Sul. Foi só em 1978 que quase toda a família veio morar em Curitiba, quando meu avô, Zelino que já era caminhoneiro, passou por Curitiba e se encantou pela cidade.
Na capital paranaense, a Dorvalina, que não havia concluído o hoje Ensino Fundamental, tornou-se administradora. Tendo um marido caminhoneiro, que estava fora de casa durante semanas, ela cuidava sozinha das finanças do dia a dia, da organização da casa e das filhas. A mais velha, já casada, morava em outra cidade, mas ainda havia duas por quem olhar. E depois, tinha a mim também.
Conheci a vó em julho de 1987. E o nome que carrego comigo, Angélica, foi uma escolha dela, depois de ouvir uma música no rádio. Eu e minha mãe moramos com meus avós até meus 2 anos de idade. E, quando ela se casou, nossa família foi morar no mesmo terreno; permanecemos juntos por mais cinco anos. Portanto, a casa da vó sempre foi minha casa também. Bastavam alguns poucos passos para eu estar na cozinha dela.
Salame, queijo e polenta brustolada
E ah…a cozinha da vó era um dos melhores lugares. Sempre com o chimarrão dela e do vô pronto, um café com leite quentinho no bule, salame e queijo para comer. Coisa boa era quando tinha polenta na hora do almoço e depois da escola eu chegava e tinha fatias de polenta em cima da chapa de ferro, sendo “brustoladas”. E os domingos com lasanha no forno? Não importa quem faça a mesma receita, o sabor não é o mesmo. Era comida com o tempero do carinho de vó. Até mesmo a salada, com legumes descascados em cima do avental, era diferente. Minha irmã lembrou-se recentemente, também, de um bolo que a vó fazia e não tinha a lista de ingredientes anotada no papel. Simplesmente juntava alguns itens, às vezes colocava uvas frescas, e pronto.
Essas uvas do bolo e os legumes da salada, muitas vezes vinham do próprio quintal da casa no Boqueirão onde ela viveu por pouco mais de 30 anos. A vó e o vô costumavam plantar por ali. E ela ainda tinha um olhar especial para as flores, com roseiras, orquídeas e até camélias espalhadas por todo o espaço. Aliás, passei poucas e boas com a vó querendo arrancar mudas até das floreiras da Rua XV. E teve também os episódios com alguns pés de laranja e jabuticaba sendo carregados por nós dentro do ônibus. Não posso dizer que minhas férias não eram animadas.
Alzheimer inverteu papéis de cuidadores da família
Certamente, nos últimos anos de vida da vó Dorvalina, se eu perguntasse dessas histórias, ela não lembraria. Há pelo menos 15 anos ela convivia com o Alzheimer que, ainda que controlado, foi levando de pouquinho em pouquinho suas memórias. Mas foi em 2019, após um internamento, que a doença transformou a minha vó em criança. Ela teve uma queda significativa no quadro clínico e passamos a ter de nos apresentar para ela algumas vezes, contar causos que ela mesma havia relatado sobre sua vida, ajudá-la a se cuidar.
A cabecinha passou a ter só vento durante muitas conversas. “De que gente que tu é?” ou “Quem que tu é?” viraram as principais frases dela. Com esforço, uma ajuda aqui e ali, ela ia lembrando. Mas dentro de uma hora, lá estávamos nós contando quem éramos e de onde viemos. Os esquecimentos, apesar de tudo, rendiam boas histórias. E por isso, apesar de não ser uma celebridade, tornou-se conhecida por muitos, já que nós contávamos de suas graças por aí.
Sair com ela para ir ao médico ou passear foi ficando ao mesmo tempo mais cansativo, mas mais interessante. Uma flor na rua, uma placa de loja, os carros no trânsito, meus amigos, a decoração de Natal: tudo era uma grande novidade. Os olhinhos azuis eram como os de criança, curiosos por tudo o que viria naquela saída de casa.
Agora, já não era ela quem me levava ao Centro para comer um pastel com refrigerante. Era eu. Agora, já não era ela quem apontava para um objeto ensinando-me o nome das coisas. Era eu. Não só eu, aliás. Mas toda a nossa família. A mulher que tanto fez por todos nós, não poderia ficar sem nosso cuidado. Minha mãe, minha tia, meus irmãos e primos, meu pai que era o filho que ela nunca teve e que corria para lá e para cá com ela em idas ao médico. Todos nos tornamos responsáveis pela vó de abraço quentinho, de gargalhada gostosa, de curiosidade extrema, de falação exagerada, de olhos azuis da cor do céu e que com a chegada da velhice se tornaram ainda mais belos.
Plano era que levasse as alianças no casamento da neta
Minha vó se foi do jeitinho que eu sempre imaginei e que, confesso, me dava certo medo na infância: ela simplesmente dormiu. Após semanas de internamento por outra questão, um dia antes de ter alta hospitalar, ela passou mal. De uma senhorinha fofa tomando suco num copo em formato de cupcake e comendo bolacha, ela passou para um estágio irreversível. Do evento inesperado, 12 horas se passaram até que a bateria dela acabasse. Não estava sozinha. Minha mãe permaneceu com ela até que o coração parasse. Foi minha mãe quem tirou os acessos de seus braços e pés, e a deixou pronta para encontrar com meu avô, falecido há dois anos e meio.
Ela entraria com minhas alianças na festa de casamento que aconteceu no último feriado de Carnaval, após duas mudanças de data em razão da pandemia. Como me disse uma amiga, talvez ela tenha achado mais interessante estar ao lado do vô, para assistir à cerimônia. Dorvalina Maria Favretto morreu em 7 de fevereiro de 2022, aos 90 anos, deixando três filhas, nove netos e sete bisnetos.
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