No fim de 2021 representantes da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estiveram em uma missão inédita no Paraná. O objetivo da visita era conhecer um pouco mais sobre o modo tradicional de produção de erva-mate no sul do estado, cultivado à sombra das florestas de araucária. E por que a combinação da erva-mate paranaense com o sombreado dos pinheiros virou assunto para a ONU?
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Quem explica é a presidente do Centro de Desenvolvimento e Educação dos Sistemas Tradicionais de Erva-Mate (CEDerva), Evelyn Nimmo. Ela, mais do que acompanhar a missão da FAO, foi uma das idealizadoras do projeto que busca reconhecer no sistema tradicional de produção da erva-mate sombreada do Sul do Paraná as características que o enquadrem dentro do programa Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (SIPAM), coordenado por este braço da ONU. Também forma o grupo de idealizadores o Observatório dos Sistemas Tradicionais e Agroecológicos de Erva-mate, que inclui a Embrapa Florestas, IDR-PR, UEPG, IFPR, FETRAF-PR, Sindicatos de Trabalhadores Rurais e de Agricultura familiar.
À Gazeta do Povo, a representação da FAO no Brasil explicou que para se enquadrarem como um Sipam, as propriedades paranaenses precisam atender certos critérios. Os representantes procuram por modelos exemplares que consigam aliar a produção agrícola à manutenção de tradições culturais. A valorização social, dos saberes e técnicas populares de produção, assim como a adoção de práticas de preservação do meio ambiente, também contam pontos com os avaliadores. O resultado só deve sair no final do ano de 2022, uma vez que a validação das propostas apresentadas à FAO passa por um escrutínio muito detalhado.
Para Nimmo, as propriedades visitadas em Irati, São João do Triunfo e São Mateus do Sul têm, se não todas, muitas das características procuradas pelos representantes da ONU. Segundo a presidente, a forma como a planta é produzida nas propriedades visitadas atende os critérios que avaliam a agrobiodiversidade e os sistemas de conhecimento local e tradicional, dois dos itens que precisam ser atendidos para o reconhecimento internacional.
“Muitas pesquisas e muitos trabalhos já realizados mostraram que há essa ligação muito forte entre os sistemas tradicionais de produção de erva-mate e as florestas de araucárias. A erva-mate não é uma planta que gosta de ficar em pleno sol, e sim ela gosta da floresta. O sistema integra a floresta inteira, e isso é muito importante não só para as plantas, mas também para toda a região. Há muitos ganhos ambientais, como a conservação dos mananciais, a proteção da água, um ar mais limpo”, detalhou.
Característica da erva-mate sombreada paranaense é única no mundo
Nelson Dias da Silva é agricultor em São João do Triunfo e se orgulha de cultivar a erva-mate da mesma forma que seus tataravôs sempre fizeram. A propriedade, de 3 alqueires, é tratada por ele como um espaço mais do que especial. “A nossa região tem uma característica que é única em todo o planeta. Não há nada sequer parecido em qualquer outra região do mundo, nem em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, no Paraguai, no Uruguai ou mesmo na Argentina”, disse.
No local, Silva mantém a produção de erva-mate no sistema tradicional, à sombra das araucárias, renovando os ervais – como são chamadas as plantações – com mudas e sementes produzidas pelas mesmas plantas que lá já estavam antes mesmo de ele nascer. A medida, mais do que manter uma espécie de originalidade em relação a espécies “forasteiras”, garante as características pelas quais a erva-mate sombreada do Sul do Paraná já vem sendo reconhecida.
“A nossa erva-mate produzida no sistema sombreado pela mata nativa tem uma diferença de qualidade que é percebida no paladar. As maiores ervateiras do Rio Grande do Sul vêm até a nossa região para comprar a nossa erva para misturar com a deles, que é produzida em ervais a céu aberto. A suavidade da nossa erva-mate produzida no sistema tradicional não é encontrada em nenhum outro lugar do mundo. A diferença é muito grande”, garantiu o agricultor.
Esse cuidado, explicou a presidente da CEDerva, é o que pode garantir o reconhecimento do sistema tradicional paranaense pela ONU. De acordo com ela, todos os produtores de erva-mate visitados conseguiram mostrar aos representantes da FAO o sistema tradicional presente no Paraná. “Eles valorizam a biodiversidade, o cultivo na floresta, a preservação de todo o meio ambiente e todo o valor cultural por trás do sistema de produção. Tem toda essa preocupação com a cultura, com as tradições, não é só uma simples plantação. Acho que nós conseguimos mostrar o verdadeiro afeto que essas pessoas têm com todo esse sistema e, acima de tudo, com a erva-mate em si”, relatou.
Reconhecimento da FAO pode trazer ganhos econômicos aos produtores
O reconhecimento do sistema paranaense de produção de erva-mate em florestas de araucária pela ONU pode trazer mais do que orgulho aos produtores do estado. Segundo a presidente do CEDerva, há dois ganhos principais com a certificação. Um deles é o econômico. “Nossa meta é que esses produtores tenham mais autonomia e mais valorização, maior retorno econômico quando forem comercializar seus produtos”, disse Evelyn. “A erva-mate produzida no modelo agroecológico é diferente daquela retirada de plantas que ficam a pleno sol. A qualidade é muito maior. Esse reconhecimento pode abrir as portas de mercados mais exigentes, mercados de nicho, para estes produtores tradicionais”, avaliou.
O agricultor Nelson Dias da Silva explicou como pode ser "aproveitado" o reconhecimento da FAO - que tem suas restrições para uso comercial. “Nós não vamos poder usar, por exemplo, um selo indicativo desse reconhecimento nos nossos produtos”, explicou. “A própria normativa da FAO não permite esse tipo de exploração. O que acontece é que a ONU reconhece o sistema como um patrimônio mundial. Isso vai trazer sim um reconhecimento cultural, e os territórios onde há esses sistemas reconhecidos podem se beneficiar em outros setores como o turismo rural”, detalhou.
Mudança de mentalidade
O segundo ponto indicado por Nimmo é trazer uma mudança de mentalidade junto às gerações futuras sobre o valor dos conhecimentos e técnicas tradicionais de produção da erva-mate. Para Evelyn, o reconhecimento da FAO pode provocar uma completa inversão na forma como este modelo tradicional é percebido pelas pessoas.
“Passa-se a ver esses conhecimentos não mais como atrasados. Ao contrário, percebe-se que há uma forte ligação com a história, um forte vínculo com a floresta. As novas gerações vão ver nestes modelos de produção uma preocupação com o futuro, e assim eles deixam de ser antigos e passam a ser modernos. Deixa de ser algo que os avós faziam e passa a ser uma excelente opção para o futuro da produção”, concluiu.
Essa é também a expectativa do agricultor. De acordo com Silva, apesar da manutenção do sistema por gerações a fio, não há registros históricos da forma tradicional de cultivo da erva-mate sombreada no Paraná. “A pesquisa científica tem pouca biografia sobre esses sistemas tradicionais. Quem vai pesquisar, quase não encontra nada escrito sobre esses sistemas. Nunca houve uma valorização por parte dos pesquisadores. Os poucos registros escritos que há é sobre os barões da erva-mate, não há quase nada de históricos sobre essas famílias. Na minha família, que nasceu dentro de um sistema tradicional, até as minhas tataravós trabalhavam e mantinham esse sistema. Mas não tem nenhum registro escrito, nenhuma biografia sobre isso. Os registros que temos estão na memória dos mais velhos, é um trabalho que estamos tentando fazer, que é este resgate histórico, para que esses sistemas tenham a devida valorização e o devido reconhecimento para as famílias, não só econômico, mas também cultural e histórico”, reforçou.
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