Há três anos no Brasil, um haitiano que vive e trabalha na região oeste do Paraná procurou a Polícia Civil para registrar uma denúncia: um golpe praticado por aquilo que, no meio criminoso, se conhece como a “ação de coiotes”. Desesperado, ele (que por questões de segurança, não pode ser identificado) tem certeza da perseguição, inclusive para a família, que ainda está na terra natal.
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Ele não está sozinho nessa. O suposto atravessador de pessoas de um país para o outro, de forma clandestina, teria feito diversas outras vítimas na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina.
O agenciador se apresentou como Cosme, disse que seria da Bahia, e prometia trazer a família da vítima do Haiti para o Brasil a partir de um voo fretado que faria uma rota pelo Suriname. O homem vendeu o pouco que conquistou no Brasil para pagar a travessia dos familiares, mas ela nunca aconteceu. Após a transferência bancária, o atravessador passou a não responder a vítima e, quando o faz, diz que precisa de mais dinheiro.
A Polícia Civil do Paraná informou que, na época (mês de fevereiro), “teve conhecimento do fato através da vítima, sendo que os dados informados por ela são de pessoas na Bahia e no Ceará”. Disse ainda que foram feitas tentativas de se verificar a autenticidade da qualificação dessas pessoas para dar prosseguimento às investigações. De lá para cá, pouco mudou.
O golpe não é novo, tem se repetido com frequência e se apresenta como uma realidade espalhada entre estrangeiros em todo o Brasil. Na maioria dos casos, as vítimas não procuram as autoridades e isso estimula o avanço criminoso. O motivo está no medo das quadrilhas e por achar que, apesar de vítimas, podem ser expulsos do Brasil. A avaliação é de Edna Nunes, coordenadora da Embaixada Solidária, organização do terceiro setor localizada em Toledo (PR) que presta atendimento a estrangeiros que chegam sem estrutura de acolhimento ou que precisam de acompanhamento para inserção no mercado de trabalho.
O fato registrado no oeste do Paraná pode ser apenas a ponta de um iceberg difícil de ser dimensionado.
“Um crime muitas vezes invisível, difícil de ser investigado. Quase um crime perfeito”, reconheceu Edna. Estrangeiros em condições de migrantes ou refugiados são vítimas frequentes nas mãos de atravessadores.
Tem aqueles que exigem dinheiro, mas nunca trazem familiares da vítima para o país, mas há os que cobram e os colocam no Brasil. Quem não pode pagar pela travessia de uma só vez, consegue parcelar, mas depois as quadrilhas os mantêm reféns, com dívidas quase impagáveis e ameaças constantes. Pouco se sabe sobre a formação dos grupos criminosos, mas é possível identificar que são formados por estrangeiros com o apoio e suporte de brasileiros.
Uma rota para o tráfico humano
Isso tem apontado para uma rota de tráfico e contrabando humano ainda invisível às autoridades, geralmente atrelada ao trabalho análogo à escravidão. No oeste paranaense, a situação é latente pelo número elevado de vagas de emprego nas indústrias: mais de 12 mil que precisam ser preenchidas, atrativo a estrangeiros que fogem de perseguições políticas, de problemas econômicos e até da fome. A esperança de uma vida melhor e de ter mais dignidade nem sempre se concretiza.
Nos últimos seis anos, Edna Nunes fez ao menos 5 mil atendimentos de pessoas vindas de mais de 30 países, a maioria de origem haitiana e, mais recentemente de cubanos, venezuelanos e argentinos.
Alguns casos vêm carregados de preocupação. “Existem coiotes que estão aplicando golpes para viagens que nunca se concretizam, mas há coiotes diretamente ligados ao tráfico e contrabando humano com atuação pesada na região da fronteira do Brasil, Paraguai e Argentina. Na verdade, não sabemos ao certo onde estão estabelecidos, as famílias têm medo de denunciar”, alertou.
A região criou, em 2022, uma rede de informações depois que os casos começaram a aparecer com mais frequência, mas poucas vezes chegam a quem deve investigar. “Dificilmente eles denunciam porque têm medo e temem pela família que ficou no outro país. Temos inúmeros deles que chegaram ao Brasil pelas mãos desses atravessadores e ficam com a vida atrelada a esses grupos. Pagam muito dinheiro, são chantageados, ameaçados”, lamentou ela.
“Demorou para identificarmos, mas aos poucos, nos nossos atendimentos, observamos que existe a ação bastante forte dessas organizações criminosas. Nos últimos anos atendemos em torno de 50 pessoas que passam ou passaram por isso”, contou.
Edna reconhece que o Brasil é um país muito acolhedor, mas ponderou que um processo de migração, principalmente do Haiti - que está em estado de sítio, pode durar anos e custar muito dinheiro. “Muitos caem nessas armadilhas por desespero, precisam trabalhar, comer, alimentar famílias”, destacou.
A coordenadora da Embaixada Solidária contou que muitos chegam sozinhos com o sonho de trazer a família e, como não é um processo rápido nem barato, se sujeitam à oferta duvidosa. “Ficam reféns, têm medo de denunciar e o crime só aumenta de proporção”.
Famílias desaparecem na região da tríplice fronteira
Nos últimos anos, além do movimento da vinda, tem-se observado também a saída sigilosa de estrangeiros na região da fronteira. Não se sabe para onde, nem como, muito menos em que condições ou para onde foram.
"Existem muitos estrangeiros atendidos pela Embaixada que somem. Um dia estão estabelecidos em uma casa, em um trabalho, crianças na escola e, de repente, desaparecem sem deixar nenhum rastro."
Edna Nunes, coordenadora da Embaixada Solidária
A polícia acredita que os mesmos grupos criminosos que agenciam a vinda de estrangeiros ao Brasil os levem a outros países por rotas ilegais. No topo da lista estão os Estados Unidos e o sonho de ganhar a vida em dólar.
A preferência dos criminosos se revela por famílias com mulheres gestantes ou com crianças, quanto menores, melhor, tudo para tentar passar mais facilmente pela fiscalização ou evitar uma deportação imediata.
Estrangeiro na rota de fuga
No ano passado, um estrangeiro que morava em Toledo (PR) foi capturado com os filhos numa dessas rotas de fuga. O caso só foi descoberto porque a mãe das crianças, também estrangeira, foi deixada para trás. O homem saiu do Paraná e viajou de carro até o Mato Grosso do Sul com duas crianças. De lá, embarcaria em um ônibus com destino a algum aeroporto internacional, provavelmente Rio de Janeiro ou São Paulo, de onde seguiria para o México. A partir dali, tentaria fazer a travessia a pé para os EUA, usando as crianças como uma espécie de escudo. Tudo isso aconteceu enquanto a mãe das crianças trabalhava em uma indústria.
Após abordagem na rodoviária, pai e filhos foram levados de volta para casa pela polícia e pelo Conselho Tutelar, lembrou Edna Nunes. Mas não durou muito. “Poucos dias depois, a família inteira sumiu e não há registros nem denúncias sobre o caso. Não há mais nenhum rastro deles, telefones, redes sociais, tudo desativado. Não sabemos se estão vivos, se viajaram por iniciativa própria ou se foram vítimas desses grupos”, relembrou a coordenadora da Embaixada Solidária.
Para Edna, o perfil desses crimes se encaixa no tráfico humano para forçar um trabalho análogo à escravidão. “Temos convivido com isso e deve ser uma realidade que se repete em várias regiões do país”, alertou.
Registro informal dos “desaparecidos”
Pelo menos oito crianças e suas famílias que eram atendidas pela Embaixada Solidária sumiram. “Muitas vezes, essas pessoas não têm uma convivência em comunidade, então se demora muito ou nem se percebe que não estão mais na cidade. Viram presas muito fáceis para os coiotes. Pedimos sempre para que mantenham uma vida social ativa, afinal, quando alguém deixar de ser visto, imediatamente alguém vai acionar uma rede de apoio”, reforçou.
Apesar de não haver registros, esse "agenciamento de vidas" está no radar da Polícia Federal. O delegado Marco Smith já foi responsável pelas delegacias de Guaíra e de Cascavel, na região da fronteira, e agora comanda a Delegacia de Foz do Iguaçu, a maior da América Latina. Os casos não chegam para as equipes de investigação, mas deveriam.
“As vítimas têm medo de denunciar, não temos registros da maioria dos casos. É muito importante que isso chegue à Polícia Federal porque iremos investigar a ação das quadrilhas. É importante dizer que não vamos investigar o imigrante, ele é a vítima”, alertou o delegado ao considerar que, mesmo que o estrangeiro não esteja completamente legalizado no Brasil, ele terá direito a colocar a documentação em ordem num prazo de seis meses.
“Ele não será punido, deportado. Isso só acontece se praticar algum crime, mas o fato de estar no Brasil sem a regularização não o impede de denunciar esses criminosos. Aliás, isso precisa ser feito”, completou.
Segundo o delegado, as condições de migração facilitam a ação dos criminosos porque há fortes indicativos das dificuldades de haitianos terem acesso a documentos no próprio governo de origem. São esses documentos que os permite sair do país e ingressar no Brasil.
Uma rede de atenção
Desde o ano passado, a região de fronteira vem estruturando uma rede de apoio para troca de informações e denúncias que envolvem os casos de tráfico humano. Um encontro estadual reuniu representantes da Secretaria de Estado da Justiça, da Polícia Federal, do Ministério Público do Trabalho, de entidades que atuam no acolhimento de estrangeiros, de profissionais da segurança pública e assistência social dos municípios, além de pesquisadores que tentam analisar, de forma acadêmica e científica, essa rota migratória.
Além dos crimes envolvendo estrangeiros, muito se falou da rede voltada ao tráfico e contrabando humano para trabalho escravo, inclusive com casos de brasileiros sendo traficados por brasileiros, dentro do território nacional.
O procurador do Ministério Público do Trabalho Fabrício Gonçalves de Oliveira, que atua em Foz do Iguaçu, alertou: “trata-se de um crime absurdo, considerado uma ameaça absurda à sociedade. Está aí (o tráfico e contrabando humano) e muitas vezes a gente não consegue enxergar”.
O procurador lembrou ainda que o trabalho escravo e o tráfico humano são crimes diferentes, mas intrinsicamente ligados e, o que antes era muito mais comum nas áreas rurais, tem se expandido aos centros urbanos, para o trabalho na indústria e no comércio.
“A qualquer indicio de crime, de tráfico ou contrabando humano, de estrangeiro ou brasileiro, é muito importante que as pessoas denunciem à Polícia Federal. São essas denúncias que nos permitem investigar e prender as quadrilhas”, reforça o delegado Marco Smith.
Imigração facilitada e golpes em outras frentes
Desde 2017, com a Lei do Imigrante (nº 13.445/2017), o Brasil facilitou o acesso de estrangeiros. No Paraná, existem mais de 120 mil imigrantes segundo estimativa do Centro Estadual de Informação para Migrantes, Refugiados e Apátridas do Estado do Paraná (Ceim) que, em sete anos, atendeu a mais de 27 mil imigrantes.
O delegado da PF alerta ainda sobre uma série de outros golpes que utilizam o estrangeiro como base para aplicação. Enquanto atuava na Delegacia de Cascavel, havia instaurado seis inquéritos que apuravam a utilização de documento falso para que estrangeiros pedissem a naturalização no Brasil. “O pedido de naturalização pode ser feito, por exemplo, com um certificado de conclusão do Ensino Médio. Identificamos nessas investigações uma instituição em São Paulo que está vendendo certificados falsos para confirmar a conclusão”, contou, após identificar um grupo de estrangeiros que apresentou documentos similares.
Em casos assim, o imigrante vai responder a um processo pela utilização de documento falso. “Mesmo assim, ele não será expulso nem imediatamente deportado. Vai responder ao processo e, no caso de ser condenado, será deportado”, esclarece.
Tráfico e contrabando humano
O United Nations Office on Drugs and Crime Web Site (Unodc), Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime na tradução literal, descreve o tráfico humano como o "recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra, para o propósito de exploração".
Já o contrabando de migrantes se caracteriza como “um crime que envolve a obtenção de benefício financeiro ou material pela entrada ilegal de uma pessoa num Estado no qual essa pessoa não seja natural ou residente”.
O tráfico humano movimenta anualmente mais de US$ 30 bilhões, segundo a ONU; 30 de julho foi o dia para conscientização internacional de combate ao crime.
Para o presidente do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (Idesf), Luciano Barros, diante de tantas evidências, o alerta está lançado. “Um crime que achávamos que era de novela, que víamos nos filmes, nas séries e na TV está muito próximo de nós e precisa de uma rede de denúncia, de monitoramento, de investigação e de atenção às vítimas”, destacou.
Campanha "Coração azul" pretende conscientizar sobre o tráfico humano
O aparecimento de casos e a urgência do tráfico humano fez com que especialistas, pesquisadores e representantes de organizações públicas e privadas se unissem para uma série de ações voltadas à conscientização, formação de pessoas e debates sobre melhorias de atendimento relacionadas às vítimas. A união deu origem à campanha Coração Azul, que tem o objetivo de promover a conscientização sobre o tráfico humano e seu impacto à sociedade.
Atividades foram realizadas no mês de julho na região da tríplice fronteira, coordenadas pela Cáritas. Entre os realizadores também esteve o Idesf, que tem sede em Foz do Iguaçu. O grupo está agora vinculado ao Gabinete de Gestão Integrada de Fronteira, com reuniões mensais para tratar do tema.
No fim do mês passado foi realizado o Seminário Internacional da Tríplice Fronteira – Tráfico de Pessoas, formação de agentes. O foco estava na formação e capacitação da rede de apoio às vítimas. “Esperamos integrar as autoridades do Judiciário, do Ministério Público, de órgãos de acolhimento e da sociedade civil para tentarmos, de alguma forma, atender essa problemática nos três grandes eixos: prevenção, acolhimento às vítimas e responsabilização dos grupos criminais”, seguiu Luciano Barros.
Os canais de denúncia anônima para casos suspeitos são os telefones 181 e 190.
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