Na fronteira entre Brasil e Paraguai não há disfarces nem camuflagens na exploração do trabalho infantil: crianças e adolescentes se inserem em meio ao trânsito frenético da Ponte Internacional da Amizade e arredores. Estão ali para pedir esmolas, limpar vidros de carros por uns trocados, vender meias e alimentos. Sozinhas ou acompanhadas pelos pais, que vivem na mesma função há décadas, elas perpetuam um ciclo preocupante.
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A região retrata uma realidade de desequilíbrio econômico e uma afronta aos direitos de se viver a infância, conforme alerta o delegado-chefe da Polícia Federal em Foz do Iguaçu (PR), Marco Smith. A falta de estatísticas oficiais sobre essa condição de trabalho infantojuvenil se mostra desafiadora a governos e instituições ligadas ao enfrentamento do problema.
Diane, de cinco anos, é uma garotinha paraguaia que passa o dia vendendo chipas, alimento típico da culinária do país vizinho, nas proximidades da Ponte da Amizade. Ao lado da mãe e do irmão de apenas um ano, ela vai e volta do Brasil ao Paraguai várias vezes ao dia. Oferecem bolinhos aos ocupantes dos veículos, no conturbado trânsito alfandegário ou aos compristas que fazem a travessia caminhando. A mãe diz que não tem com quem deixar as crianças e “precisa sobreviver de alguma forma”. O marido ganha a vida como manobrista e indicando clientes a lojas de eletrônicos e perfumes, no centro de Cidade do Leste, principal polo comercial do país vizinho.
O caso da família passa longe de ser isolado na fronteira mais movimentada do Brasil, localizada no oeste do Paraná, uma das regiões mais ricas do país, com um Produto Interno Bruto (PIB) que ultrapassou os R$ 100 bilhões no ano passado. A região, que acomoda cinco das dez maiores cooperativas do agronegócio do Brasil, vive uma condição de pleno emprego e indústrias regionais têm dificuldade de contratar. Há mais de 12 mil vagas abertas na região que não conseguem ser preenchidas por falta de profissionais.
Apesar da riqueza regional, a exploração do trabalho infantil é uma realidade vista em diversos pontos ao longo dos 1,4 mil quilômetros de fronteira entre os dois países. É quase cultural, analisa o delegado da PF. A situação mais crítica, reconhece Smith, acaba sendo o entorno fomentado pelo movimento da Ponte da Amizade, pela qual atravessam a fronteira cerca de 80 mil pessoas diariamente.
Força-tarefa quer tirar crianças e adolescentes do trabalho infantil na fronteira
Em fevereiro, uma operação integrada com órgãos municipais, federais e autoridades paraguaias identificou a reiterada prática criminosa na fronteira com o Paraguai. “O objetivo foi reprimir e combater a exploração de trabalho de crianças e adolescentes que chegam ao Brasil pela Ponte Internacional da Amizade”, informou a PF.
A atuação envolve, do lado brasileiro, além da PF, o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Secretaria Municipal de Assistência Social de Foz do Iguaçu, o Conselho Tutelar, representantes do grupo Cáritas e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Do lado paraguaio, de onde vem a maior parte das crianças, está o Consulado, Ministério Público e a Secretaria de Justiça Social. Não foi localizado no país vizinho nenhum responsável pelo grupo que pudesse falar à reportagem.
“O objetivo está no combate à exploração infantil principalmente de crianças paraguaias que são forçadas a pedir esmola em diversos pontos da cidade de Foz do Iguaçu, sendo submetidas a riscos ao permanecerem em ruas movimentadas, pedindo dinheiro, vendendo água, limpando carros ou sentadas na calçada durante todo o dia sob sol e condições climáticas adversas, em horário em que deveriam estar na escola. Trata-se de crime complexo que envolve fatores econômicos, sociais, culturais e psicológicos”, alertou a PF.
Após a abordagem de quase uma centena de veículos naquela operação, 32 menores de idade foram devolvidos às autoridades paraguaias. “Constatou-se pelo menos um caso de entrada de criança para trabalho no Brasil, sendo a vítima conduzida pelo Consulado Paraguaio às autoridades do seu país: a menor carregava itens de limpeza de vidros de carro em sua mochila”, descreveu a PF.
Cerca de um mês depois, a força-tarefa voltou à Ponte Internacional da Amizade e vistoriou pontos típicos à suposta prática de exploração infantil. Sete crianças e adolescentes de origem paraguaia foram encaminhadas à autoridade do país vizinho. “Se tivermos ações todos os dias, todos os dias localizaremos crianças nestas condições”, apontou o delegado da PF.
Crianças exploradas precisam a acesso a medidas protetivas, alerta PF
O objetivo, explicou o delegado, é oferecer a crianças e adolescentes acesso a medidas protetivas e assistenciais no Paraguai, apesar de o país não contar com legislações especificas de proteção, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) brasileiro. “Sabemos que a situação não é simples e que é algo que precisa ser combatido frequentemente. Além das condições de trabalho infantil, há o risco de outros crimes, como abuso sexual. Essas crianças precisam de cuidado e atenção, de viver a infância”, ponderou.
Em uma dessas ações integradas, a procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho em Foz do Iguaçu, Claudia Honório, afirmou que mobilizações assim são essenciais para o enfrentamento ao trabalho de crianças e adolescentes. "Lembra-se que o trabalho em logradouros públicos [nas ruas] é uma das piores formas de trabalho infantil, devendo ser combatido. Crianças e adolescentes de outras nacionalidades não podem ser explorados para o trabalho no Brasil, cabendo à rede de proteção garantir seus direitos fundamentais com absoluta prioridade”, afirmou.
Não existem dados atualizados e precisos sobre a exploração do trabalho infantil na fronteira entre Brasil e Paraguai, mas a Secretaria de Assistência Social em Foz do Iguaçu faz um apelo para que casos identificados no município sejam relatados imediatamente às autoridades como Conselhos Tutelares, em denúncias anônimas pelo disque 100 e aos serviços de abordagem social.
Trabalho infantil voltou a crescer no Brasil, aponta levantamento do IBGE
Apesar de neste caso específico a maioria das abordagens envolver crianças e adolescentes paraguaios, no Brasil o trabalho infantil voltou a crescer. Levantamento publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no fim do ano passado, intitulado Pnad Contínua Trabalho de Crianças e Adolescentes, revelou que há 1,9 milhão de pessoas de 5 a 17 anos nessas condições. Em todo o país havia um total de 38,3 milhões de crianças e adolescentes no ano-base da pesquisa, em 2022.
O levantamento colocou o Brasil de volta aos indicadores de 2017, quando 4,9% das crianças tinham alguma ocupação laboral. O desempenho foi o segundo pior desde que o levantamento começou a ser realizado, em 2016. Naquele ano 5,2% das crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhavam.
A organização Criança Livre de Trabalho Infantil descreveu o que é considerado trabalho infantil. “É toda forma de trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima permitida, de acordo com a legislação de cada país. No Brasil, o trabalho é proibido para quem ainda não completou 16 anos, como regra geral”, descreveu.
Quando se trata de um aprendiz, o desempenho laboral é permitido a partir dos 14 anos, mas se for uma atividade à noite, em condições de perigo, de insalubre ou atividades consideradas como as piores formas de trabalho infantil, a proibição se estende até os 18 anos incompletos. “Assim, a proibição do trabalho infantil no Brasil varia de acordo com a faixa etária e com o tipo de atividades ou condições em que é exercido”.
- até 13 anos – proibição total
- de 14 a 16 anos – admite-se uma exceção: trabalho na condição de aprendiz
- de 16 a 17 anos – permissão parcial. São proibidas as atividades noturnas, insalubres, perigosas e penosas, nelas incluídas as 93 atividades relacionadas no Decreto n° 6.481/2008 (lista das piores formas de trabalho infantil), haja vista que tais atividades são prejudiciais à formação intelectual, psicológica, social e/ou moral do adolescente.
O Disque 100 funciona em todo o Brasil para a denúncia de casos envolvendo trabalho e exploração infantil, de forma anônima e sigilosa.
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