Indústrias de todo o país estão enfrentando problemas graves com a falta de profissionais para fiscalização da produção agropecuária, o que coloca em risco o funcionamento de plantas comerciais inteiras e abates gigantescos do país, que é o maior exportador de carnes do mundo. A situação está em xeque porque não há profissionais suficientes para o Serviço de Inspeção Federal (SIF). A informação vem do Conselho dos Secretários de Agricultura do Brasil (Conseagri) e é reforçada por outros órgãos do setor produtivo.
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A contratação e designação dos profissionais é de responsabilidade do governo federal, por meio do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). O órgão anunciou concurso para 200 profissionais neste ano mas, na avaliação do setor produtivo e de autoridades do segmento, as contratações serão insuficientes para atender a demanda reprimida.
Outro ponto de preocupação é a demora para a implementação e regulamentação da Lei do Autocontrole, que determina que as empresas do setor agropecuário criem sistemas próprios para auxiliar o poder público nesta tarefa.
Para se ter ideia, a falta de profissional à inspeção federal somente no estado do Paraná, um dos maiores produtores de proteína animal do Brasil, passava de 30 auditores agropecuários, os chamados affas, em 2022. Estes trabalhadores são essenciais para atender a expansão das atividades das empresas, como aumento de turnos e de dias de abate, além de novas organizações que estão iniciando na atividade.
A avaliação de defasagem estadual, na época, foi da Delegacia Sindical Estadual do Paraná do Sindicato dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical). No estado, são 55 estabelecimentos de abate fiscalizados de forma permanente e 210 estabelecimentos de produtos de origem animal avaliados periodicamente. Pelo Brasil faltam ao menos 2 mil profissionais, segundo a Anffa.
Chega a 40% o déficit na inspeção federal que assegura qualidade nos produtos de origem animal
Responsáveis por assegurar a qualidade de produtos de origem animal (comestíveis e não comestíveis) destinados ao mercado interno e externo, bem como de produtos importados, os profissionais do SIF devem ser designados, além das indústrias, a portos, aeroportos e postos de fronteira, nos campos de produção, nas empresas agropecuárias, nos programas de desenvolvimento agropecuários elaborados pelo Mapa, nas negociações internacionais, entre outros ambientes ligados a atividades afins. “E falta gente em todos esses setores”, afirmou o presidente do Conseagri e secretário da Agricultura do Paraná, Norberto Ortigara.
Sob a supervisão do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa), os profissionais do SIF precisam registrar e aprovar os produtos de responsabilidade do Mapa, como a proteína animal, envolvendo carnes e derivados.
É essa comprovação que garante certificação sanitária ao consumidor e as conformidades legais, internas e externas.
Não há concursos para a categoria há pelo menos cinco anos e o setor só vê o número de trabalhadores reduzir. Segundo a Anffa Sindical, no ano 2000 existiam pouco mais de 4 mil desses trabalhadores no Brasil. Agora, são cerca de 2,3 mil, redução de 40%.
Indústrias sob risco de parar
No Paraná, ao menos duas grandes indústrias sofreram recentemente com os entraves provocados pela falta de profissionais do SIF. O próprio Mapa reconhece a defasagem, mas seu número de momento é inferior ao estimado pelo setor produtivo. “A demanda é de atualização constante, variando de acordo com registros de novos estabelecimentos, cancelamento de registro de estabelecimentos, aumento de turnos de abate, mercados com exigências específicas. Não há como quantificar de modo exato a atual necessidade. Se for considerar a data de hoje, seriam 420 Agentes de Fiscalização Federal - Médico Veterinário e 660 Agentes”, afirmou o Mapa à Gazeta do Povo.
Para o Conselho dos Secretários de Agricultura, o tema é preocupante e volta com força à pauta. “Há 20 anos que venho me empenhando para distinguir o que é inspeção, o que é poder de polícia e o que é ato de produção, e essa, portanto, deve ser uma relação entre o abatedouro, o frigorífico e o profissional. É fazer do jeito que fizemos no Paraná, eu não tenho nenhum fiscal em chão de fábrica (para a inspeção estadual)”, alertou Ortigara.
O secretário ponderou que, de fato, há uma crise e um cenário constante de sufoco. “Todo dia precisa resolver um problema numa planta porque um profissional entrou em licença médica, outro que já cumpriu o turno de trabalho ou que não pode mais ficar, aí tem que suspender o abate. É gente que vai para a justiça para implorar que se coloque um veterinário na fábrica, isso é grave e nos preocupa muito”, seguiu.
O assunto da falta de inspeção federal tem sido pauta também no Fórum de Sanidade do Brasil (Fonesa) coordenada por outro paranaense, Otamir Cesar Martins. “Temos tratado juntos deste assunto e de forma constante. É um grande problema e que precisa ser resolvido, de uma vez”, completou Norberto Ortigara.
Lei do Autocontrole precisa de regulamentação
Na tentativa de solucionar parte dos entraves, foi aprovada a Lei 14.515, chamada de Autocontrole, e que precisa, segundo o secretário paranaense, ser regulamentada o mais rápido possível. “Estive com o ministro da Agricultura (Carlos Fávaro) para tratar deste assunto específico por três vezes, pedindo para que a gente evolua, todos os países decentes do mundo com grande produção de proteína animal fazem de outra forma, apenas nós, a Argentina e o Uruguai que somos chapa-branca, (temos) funcionários públicos fazendo inspeção”, destacou.
Para Ortigara, o que não se delega é o poder de polícia para fiscalização quanto às boas práticas, autocontrole e transparência. “Vai ter concurso no Mapa, mas não vai nem preencher o vão do dente, não vai repor os profissionais porque vai ter mais agrônomo do que veterinário, então não se resolve o problema. A solução passa exatamente pela regulamentação e implantação da Lei do Autocontrole. Com ela, as empresas contratam seus médicos veterinários para fazer o serviço no chão de fábrica e ao Estado, a União e o Município cabe a fiscalização disso”, exemplificou.
Ortigara lembrou que a Lei mencionada está em fase de consulta pública, mas reconhece que existem forças contrárias à sua implementação. “Tem gente grande que prefere continuar no velho modelo por achar que é mais cômodo”, criticou.
O presidente do Conselho dos Secretários de Agricultura lembrou ainda dos casos de judicialização solicitando profissionais nas indústrias e reiterou que não se trata de uma afronta ou agressão ao governo federal. “A coisa é prática, estavam (as indústrias) suspendendo abate de um grande frigorífico no oeste do Paraná aos sábados, representando 6,5 mil suínos, isso é inadmissível. No norte pioneiro queriam suspender o abate de mil suínos e 200 mil frangos por dia porque não tinha mais inspeção. Como assim? Se o modelo é esse, que se resolva, se não que possamos implementar outro modelo que eu confio plenamente porque o mundo mostra assim, temos certeza que vai funcionar”.
O quadro funcional do Dipoa é de 2.867 profissionais, nem todos concursados. Segundo o Mapa, em todas as atividades do departamento existem: 62 agentes administrativos; 697 agentes técnico de nível médio; 814 agentes em termo de cooperação técnica; 950 auditores fiscais federais agropecuários; dois estagiários de curso superior, 174 médicos veterinários temporários e 168 veterinários em termo de cooperação técnica.
Profissionais da inspeção federal estão no limite da exaustão
A falta de profissionais faz com que os da ativa se mostrem sobrecarregados. O presidente da Anffa Sindical, Janus Pablo Macedo, ponderou que seriam necessários 2 mil novos auditores fiscais federais agropecuários, os affas, entre veterinários, agrônomos, farmacêuticos, químicos e zootecnistas, considerando apenas a demanda atual. “E esse nosso número não fica longe da métrica do Mapa que apresentou em torno de 1,7 mil cargos vagos para auditores fiscais agropecuários no Brasil”, seguiu.
A entidade tenta sensibilizar o governo federal para que as 200 vagas previstas em concurso neste ano sejam transformadas em 400 no ano que vem, o que daria, segundo Macedo, uma revitalização à força de trabalho. “Esses concursos seriam para atender outras áreas que não serão contempladas neste concurso. Se considerarmos o concurso de 2018 só para inspeção foram 539 auditores fiscais federais agropecuários, apenas veterinários, todas as demais áreas ficaram desassistidas por dez anos”, reforçou.
O presidente da Anffa disse ainda que não existe um único estado brasileiro superavitário em profissionais do setor e que, além de auditores, é essencial a contratação de servidores em nível médio para o suporte administrativo. “Muitos auditores estão fazendo a parte administrativa, ou seja, estão perdendo tempo ao invés de estarem trabalhando em sua área, liberando produtos ao exterior, certificando alimentos”, reforçou.
Para Macedo, a falta de profissionais seria resolvida de forma gradativa com a realização de concursos públicos frequentes. Os últimos foram em 2007, 2014 e 2018. “E agora, 5 anos depois, teremos outro concurso, mas a carreira precisa de regularização e realização de concursos para que se faça essa oxigenação e que essa renovação venha a ser mola propulsora do agro brasileiro, garantindo segurança alimentar e qualidade dos produtos consumidos, tanto no Brasil quanto os exportados para todo o mundo”, orientou.
Quanto à Lei de Autocontrole, o presidente da Anffa comentou que a entidade trabalha desde o início, com o Mapa, para apresentação de melhorias. Na Câmara dos Deputados, durante a tramitação, foram apresentadas 21 emendas, muitas diretamente ao relator. Ao Senado foram apresentadas 20 emendas, mas não foram atendidas.
“Tivemos duas aceitas, mas das que trariam eficiência e mais segurança à população, não foram aceitas. Muitos dos prazos previstos em lei já foram vencidos. Os auditores fiscais estão trabalhando por meio de orientações de seus departamentos, mas sem aquela segurança jurídica porque não houve regulamentação da lei. Não podemos nem dizer como ficará, porque é um guarda-chuva gigante que se abre com a regulamentação, e ela não foi realizada pelo Mapa”, concluiu.
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