Mapa mostra os resultados do estudo sobre a propagação da febre amarela no Paraná.| Foto: Nalu Lourençon/Sesa/Divulgação

As ações de combate ao avanço da febre amarela no Brasil inauguram um patamar inédito. Com base nos dados apurados a partir do cenário da doença em São Paulo no último ano, na mortalidade de macacos no Paraná e nos aspectos climáticos e topográficos do estado, já é possível antecipar a rota do vírus - que vai chegar ao Paraguai depois de atravessar o estado [veja aqui]. Depois do Litoral, da Grande Curitiba e dos Campos Gerais, as regiões Norte, Noroeste, Centro e Sul devem ser as próximas a enfrentar o avanço da enfermidade. E na mira iminente do problema estão cidades populosas como Londrina e Maringá que, juntas, mas sem considerar as áreas metropolitanas, têm quase um milhão de habitantes.

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O diagnóstico é resultado de um estudo que tem nome e sobrenome: Corredores Ecológicos Funcionais. Trata-se de uma análise desenvolvida a partir de outubro de 2017 pelo veterinário e pesquisador Adriano Pinter, da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), de São Paulo. O levantamento consiste no cruzamento de indicadores e na consequente projeção da dispersão do problema. "A ideia é utilizar esse recurso para reduzir o impacto da febre amarela no sul do país e, obviamente, para salvar vidas", afirma.

As ocorrências de macacos infectados são a principal base de informações. "Nós trabalhamos em cima de um mapa. Quando as pessoas avisam as autoridades sanitárias sobre esses casos, exames são realizados para confirmar ou não a presença do vírus", explica Pinter. Se o resultado é positivo, o dado entra no sistema pontuando local e data exatos. "Então nós conseguimos calcular a distância de um animal para outro e o tempo entre os eventos para saber a velocidade do mosquito e a direção em que ele se desloca". Atualmente, a capacidade de previsão, segundo a Secretaria da Saúde do Paraná (Sesa), é de, aproximadamente, dois meses.

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Desde que foi criado, o método de análise recebeu uma série de contribuições, inclusive da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde, e do Grupo de Vigilância das Arboviroses, da mesma pasta. Em fevereiro de 2019, o levantamento começou a ser refinado e adaptado por uma equipe multidisciplinar formada por iniciativa do Paraná para a realidade do sul do Brasil, com a participação de especialistas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. "Essa abordagem é inédita no país. Há cerca de um ano, [o governo de] São Paulo já sabia que o vírus estava a caminho do Paraná", afirma a bióloga e pesquisadora Márcia Chame, coordenadora da plataforma de Biodiversidade da Fiocruz. "O Paraná tem sido essencial no apoio às pesquisas e no avanço do uso de novas tecnologias para melhorar a sensibilidade e a avaliação de riscos das áreas prioritárias em relação à febre amarela".

Com a metodologia em mãos, o processamento dos indicadores é tarefa da Fiocruz, que desenvolveu uma plataforma colaborativa que amplia a presença dos organismos de pesquisa e saúde. "É um aplicativo, o SISS-GEO, que qualquer pessoa pode baixar no celular, no computador ou tablet", esclarece Chame. A ferramenta serve para monitorar a saúde de animais silvestres e também determinados indícios da presença de doenças que podem afetar seres humanos. "Funciona assim: o cidadão entra, cadastra o bicho que viu, indica a possível espécie, diz se está vivo ou morto e pode até mandar fotos".

A veterinária Paula Linder, do Centro de Informações Estratégica em Vigilância em Saúde(CIEVS), da Sesa, ressalta que esse apoio da população insere os pesquisadores em um número maior de áreas, mas em menos tempo. "As pessoas acabam se transformando nos nossos olhos e a informação chega em tempo real". Os técnicos então fazem uma pré-avaliação sobre o tipo de animal encontrado antes do deslocamento das equipes. "A atuação é muito mais assertiva, é economia de dinheiro e, ao mesmo tempo, um meio mais eficaz de obter amostras em condições realmente capazes de indicar a presença do vírus da febre amarela", argumenta. "O material biológico muito apodrecido prejudica a verificação e a gente perde a possibilidade de saber se ali tinha doença ou não", complementa Chame.

O ciclo do vírus

O vírus da febre amarela ocorre de tempos em tempos, em intervalos que variam de sete a dez anos. A explicação mais plausível, conforme especialistas, é a de que um período termina quando há um esgotamento de indivíduos suscetíveis à doença, humanos ou não. De acordo com o Ministério da Saúde, o homem é uma vítima acidental, já que, de um lado, a enfermidade afeta macacos e micos que se deslocam para áreas urbanas, ou, por outro lado, por causa da presença de seres humanas em regiões onde o vírus circula.

O ciclo atual começou no Centro-Oeste, em 2014. Pela análise desenvolvida por Adriano Pinter, entre 2017 e 2018, o vírus se deslocou no sentido norte-sul a uma velocidade de 2,7 quilômetros por dia, em meses quentes, e de 0,5 quilômetro/dia nos dias mais frios. No Paraná, no entanto, a dispersão acontece também no sentido leste-oeste. "Nesse ritmo, até o verão já teremos eventos espalhados por todo o interior de Santa Catarina, nas áreas de fronteira, no Paraguai e na Argentina".

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Historicamente, o Ministério da Saúde alerta para os períodos marcados pelas temperaturas e taxas de umidade mais elevadas. "É claro que outros fatores interferem, muitos outros, mas como a doença ocorre sempre a partir da região amazônica, e depois desce e chega ao Centro-Oeste e Sudeste, é de se imaginar que as áreas com aspectos parecidos podem concentrar um volume maior de casos", esclarece Pinter. Além disso, aspectos como o relevo, a concentração de rios e a existência de fragmentos de floresta também precisam ser levados em conta.

Informações científicas indicam que a altitude exerce uma espécie de barreira natural para o mosquito. Além disso, "as áreas que têm mais áreas de mata atuam como retardatárias em relação ao avanço do vírus, uma vez que nesses ambientes há uma diversidade maior de hospedeiros e isso atrasa a dispersão para outros pontos", conta Chame. Geralmente as fêmeas é que picam e sugam sangue para o desenvolvimento completo dos ovos e maturação nos ovários, e não para alimentação. "Se há mais vegetação, há também uma chance maior de diversidade na fauna, e com isso a fêmea não sente tanta necessidade de extrapolar o voo para outros locais".

Questionado sobre o sentido de avanço do vírus durante os ciclos, Pinter fala sobre a progressividade da doença. "Não há notícia sobre um eventual movimento de retorno. O que se sabe é de registros remanescentes". O período reprodutivo dos vetores silvestres é no fim do outono, mas o pesquisador diz que os ovos não eclodem imediatamente. "Eles ficam em estado latente até a primavera seguinte, mas já sabemos que as larvas podem não se desenvolver e esperar para nascer só na outra primavera". Na prática, isso significa esses filhotes podem esperar até um ano e meio para nascer, o que justifica os episódios no estado de São Paulo atualmente, após o fim da fase endêmica.

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Trabalho de campo

A primeira fase da pesquisa apresentada nesta sexta-feira (26) contou com ações em campo durante duas semanas seguidas por técnicos do setor de Saúde das esferas estadual e federal. "Nós pedimos ajuda para o Ministério da Saúde, que foi muito sensível e enviou equipes ao Paraná quase que imediatamente", lembra a diretora de Atenção e Vigilância à Saúde da Sesa, Maria Goretti David Lopes. "Esses profissionais chegaram, percorreram áreas rurais, matas, reservas ecológicas e até pontos isolados das cidades paranaenses de São José dos Pinhais, Castro, Ponta Grossa, Jaguariaíva, Tibagi, Piraí do Sul e Carambeí entrevistando moradores, vacinando, coletando amostras de mosquitos, de animais, enfim, foi um trabalho muito coordenado e útil que foi essencial para essa projeção de alcance". Ao todo, 37 locais foram visitados e mais de 1,8 mil pessoas foram entrevistadas e orientadas sobre a importância da imunização.

Ainda conforme a diretora, envolver os demais estados do sul do Brasil foi uma ação consequente, especialmente depois do contato com a pesquisa de Adriano Pinter, que já servia de base para uma série de medidas no Sudeste. "É uma questão de consciência e responsabilidade, uma vez que o mosquito não respeita limites políticos criados pelo homem, nós convidamos Santa Catarina e Rio Grande do Sul para participar porque já sabíamos que a doença provavelmente continuaria avançando, e isso está acontecendo".

Vacina é a única forma de evitar a infecção

Os primeiros resultados da pesquisa foram divulgados nesta sexta-feira (26), pela Secretaria da Saúde do Paraná. A ideia é antecipar as ações de educação, conscientização e vacinação da população para reduzir o impacto da doença no estado. "A metodologia tem um alto percentual de acerto, de 93% em relação ao local onde os casos serão verificados", avisa Adriano Pinter. "O tempo varia um pouco mais, mas, no geral, a margem de oscilação não é muito grande".

O boletim epidemiológico mais recente do órgão, divulgado no início de julho, indicava 480 notificações, com 17 confirmações e 1 óbito, em 6 de março de 2019, de um morador de Morretes, no litoral paranaense. A vítima era um idoso que se recusou a receber a imunização e ficou doente pouco tempo depois.

Maria Goretti enfatiza que a principal dificuldade no combate ao problema é a crença infundada de que a vacina prejudica a saúde, ao invés de ajudar. "Nós temos nos desdobrado, mas ainda assim, isso preocupa demais. É uma situação tão grave que aquela recomendação do governo federal de distribuir as doses somente a pessoas com idades entre 9 meses e 59 anos caiu. Acabou de ser derrubada pelo próprio Ministério da Saúde".

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Embora tenha tratamento e cura, a febre amarela é uma enfermidade muito agressiva, cuja taxa de letalidade gira em torno de 40%, segundo a veterinária Paula Linder. "O aparecimento dos sintomas e o agravamento do quadro varia de organismo para organismo e pode ser muito rápido, por isso a imunização é a única forma que as pessoas têm de se proteger".

O aplicativo SISS-GEO

O aplicativo SISS-GEO (Sistema de Informação de Saúde Silvestre) pode ser baixado gratuitamente. Por meio dele, o usuário informa imediatamente ao Ministério da Saúde caso se depare com macacos mortos em qualquer região do país.

"Todo esse trabalho é um piloto para o Brasil", conta Marcia Chame. "O Paraná já atua dentro de um modelo em georreferenciamento, e agora, unindo isso a essa plataforma de dados, ao aplicativo, nós conseguiremos aumentar cada vez mais a capacidade de previsão".

Histórico da febre amarela no Brasil

O primeiro surto de febre amarela de que se tem notícia no Brasil foi o de Recife em 1685, provavelmente trazida por marinheiros infectados que chegaram ao país em uma embarcação vinda de São Tomé, na África, depois de uma escala em São Domingos, nas Antilhas, onde a doença já havia se espalhado. Em solo brasileiro, o vírus circulou inicialmente entre mosquitos Aedes aegypti, que são urbanos, e depois se transferiu para mosquitos silvestres, como o Haemagogus janthinomys e o Haemagogus leucocelaenus, que são hoje os principais hospedeiros.

As variações silvestre e urbana da febre amarela são provocadas pelo mesmo vírus. A diferença é que, na primeira, os hospedeiros e amplificadores são os macacos - especialmente os bugios, saguis e macacos-prego -, enquanto na segunda, isso acontece a partir dos seres humanos. Outro aspecto que determina um e outro tipo que, no tipo urbano (registrado pela última vez no Brasil em 1942), o vírus é transmitido pelos mosquitos do gênero Aedes sp.

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