A modalidade de pagamento de pedágios em sistemas de cobrança eletrônica, o free flow, está em testes no Brasil. O experimento acontece em três pórticos de cobrança na BR-101 (Rio-Santos), localizados no Rio de Janeiro. Foi o passo inicial, recentemente dado pela concessionária CCR RioSP, para validar o modelo, por meio de um sandbox regulatório da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) do final de 2022. Ao que tudo indica, a iniciativa deve se proliferar, e pode chegar inclusive às novas concessões das rodovias paranaenses – desde que resolvidas questões regulatórias ainda pendentes.
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O grande desafio em relação à regulação do sistema e a consequente extensão a novas e atuais concessões é a maneira como governos e concessionárias vão garantir a adesão ao pagamento e lidar com a inadimplência nesse tipo de cobrança. Com base em dados de países da América Latina que usam o free flow, como o Chile, a falta de pagamento fica na média de 6%. E, quando o usuário não paga, além de gerar uma dívida com a concessionária do valor da tarifa, também é gerada uma infração de trânsito. Ou seja, duas contas: a tarifa atrasada e a multa.
Atualmente, o usuário que trafega em uma rodovia concedida encontra uma barreira física nas praças de pedágio. “Quando removemos essa barreira física, a pergunta que surge é: como esse usuário irá pagar pelo trecho percorrido? Não há uma solução única para garantir o que chamamos de enforcement, ou seja, incentivo para adesão ao pagamento. Precisaremos recorrer a uma série de mecanismos”, explica o diretor-presidente da Associação Brasileira das Concessionárias de Rodovias (ABCR), Marco Aurélio Barcelos.
E quando a inadimplência acontece, também é preciso criar ferramentas para lidar com o prejuízo. O primeiro passo é a discussão sobre o poder concedente assumir o risco. O usuário que não paga, portanto, acarreta um saldo de compensação para a concessionária. “Afinal, se ninguém mais pagar, a concessionária irá à falência, e não apenas teremos o fracasso do free flow, mas das concessões como um todo. O modelo colapsa diante de uma inadimplência generalizada”, afirma Barcelos.
No modelo que está sendo testado pela CCR, por meio do sandbox regulatório, os contratos preveem que as inadimplências sejam um risco misto, assumido pelo poder concedente e pela concessionária. O mesmo acontece no Lote Noroeste, em São Paulo, onde a EcoRodovias assumiu recentemente a concessão de 600 quilômetros de rodovias e prevê instalar o sistema automático gradualmente, entre o segundo e o sétimo ano de contrato. Algo que, no momento, vai de contrato a contrato, já que a legislação ainda não contempla uma padronização para o sistema.
Como incentivar o pagamento?
Mesmo com a opção regulatória, ainda é preciso avançar em ferramentas de incentivo ao pagamento. Caso contrário, quem vai bancar a conta da inadimplência alheia é o usuário que paga corretamente o pedágio. Afinal, o caminho certo é diluir os prejuízos na tarifa.
O estímulo ao uso da tag eletrônica é, talvez, a principal delas. Hoje no Brasil, cerca de 60% dos usuários de rodovias concessionadas utilizam desse meio de pagamento, um dispositivo colado no para-brisas do veículo que é lido pelo equipamento de cobrança e emite o valor direto no cartão de crédito do proprietário. “Mas é uma média. Em algumas rodovias, como em São Paulo, essa média chega a 80%. Em outras, não chega a 30%”, esclarece Barcelos.
Com o Desconto Básico de Tarifa (DBT), regulamentado pela ANTT e adotado também por agências reguladoras estaduais, quem paga por meio eletrônico tem desconto na tarifa, em geral, de 5%. E usuários frequentes conseguem descontos ainda maiores nessa modalidade de pagamento. Ambas as prerrogativas estão previstas para as concessões dos lotes 1 e 2 das rodovias paranaenses.
No Chile, país que serve de case para o Brasil nesse tipo de cobrança, o uso das tags é uma exigência legal - e, mesmo assim, nem 85% dos veículos usam o dispositivo. A exigência legal era algo que as concessionárias previam para o Brasil, mas que ainda não consta na regulamentação. Por isso, o setor já discute de que maneira vai aprimorar os incentivos – ou desincentivos – para garantir o pagamento.
“Ao utilizar o pagamento via cabines de pagamento automático, o usuário se beneficia hoje de um corredor mais fluido. Mas, quando todas as cabines são fluídas, por que alguém aderiria ao free flow? Será que um desconto de 5% é suficiente? Vamos precisar pensar sobre a construção de proporções de desconto, por exemplo, para que o usuário realmente se sinta incentivado a aderir ao pagamento automático”, estima o diretor-presidente da ABCR.
Ou, ainda, fazer pesar de verdade no bolso a falta de pagamento. A experiência internacional mostra que as multas podem chegar a US$ 800 em caso de não pagamento da tarifa. “E ainda existe um multiplicador do valor devido da multa em até 5 vezes, caso a concessionária tenha que entrar com uma ação judicial para cobrar a dívida.”
No Brasil, por enquanto, o não pagamento gera uma multa de menos de R$ 200 ao motorista. “O ideal seria que a legislação tratasse disso, mas há uma oportunidade para explorar a construção desses mecanismos dentro da própria regulação contratual”, diz Barcelos.
Adesão surpreende CCR
Mas a experiência da CCR na BR-101 no Rio mostra que, ao dar alternativas ao usuário, o sistema funciona. O superintendente de Tecnologia de Arrecadação da CCR, Cleber Chinelato, diz que toda uma plataforma de cobrança foi estruturada para facilitar o processo de pagamento. “O usuário passa, é identificada a placa e automaticamente está disponível no aplicativo e no site (a fatura) para pagamento, por cartão ou pix. Fizemos um processo intenso de comunicação com as prefeituras e comunidades próximas e ainda formamos uma rede credenciada presencial para pagamento com dinheiro ou cartão, como opção”, conta.
Outro resultado interessante é que, mesmo contando apenas com os descontos padronizados de 5% para pagamentos por tags e para usuários frequentes, a concessionária viu aumentar em 46% o uso do dispositivo nos veículos que circulam pela região. O que é creditado à alta adesão do usuário ao sistema que permite maior fluidez do tráfego, principal objetivo da CCR ao optar pelo free flow no trecho. Os pórticos estão localizados na região litorânea do RJ (Paraty, Mangaratiba e Itaguaí), onde os congestionamentos podem ser intensos na alta temporada de verão.
A concessionária ainda não divulga os dados de inadimplência, mas garante que estão abaixo do esperado nesses quase três meses de experiência com o sistema, que entrou em operação em 31 de março. “A gente tinha medo de que o brasileiro não entendesse a mecânica e não fizesse o pagamento, mas não é isso que estamos vendo”, afirma o superintendente.
Os planos de expansão incluem a entrada em operação do free flow na mesma concessão, mas na região metropolitana de São Paulo, em março de 2025. O objetivo principal, no entanto, será a melhoria da gestão de fluxo. “Ali haverá uma tarifa dinâmica, que vai funcionar conforme o fluxo de veículos na via, garantindo que (a cobrança) seja para viagens de longa distância”, antecipa.
Para a CCR, o sistema é benéfico, mas deve ser estudado caso a caso. E pode se valer ainda de alternativas, como o autoatendimento, que tem tido boa receptividade em algumas rodovias. “O brasileiro é bastante aderente a qualquer novidade que a gente coloque nesse sentido. E quando tivermos a ampliação para outros estados e rodovias a cultura vai ficar ainda mais fácil.”
O que diz a lei
Para ficar claro como a questão legal evoluiu no país recentemente, foi somente em 2021 que a lei federal nº 14.157 passou a permitir a operação do free flow no Brasil. No ano seguinte, veio a resolução 984 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que regulamentou a lei, indicando a forma de funcionamento. A partir daí foi possível estabelecer o sandbox regulatório, estabelecido nos termos da resolução da ANTT nº 5.999/2022, que permitiu o teste do modelo.
Segundo a ANTT, o sandbox só foi possível com base nessas normas permissivas, até que a agência tenha uma regulamentação, alinhada com as já existentes, para poder admitir este tipo de operação de forma mais ampla. Por outra lado, o sandbox serve para testar se os usuários se adaptam à tecnologia e verificar se vale a pena a adoção do free flow em contratos futuros, além de incentivar a adesão pelas concessões vigentes.
Para Barcelos, da ABCR, um avanço importante no âmbito da legislação foi a previsão de que a concessionária possa utilizar o banco de dados da Senatran, órgão executivo do Sistema Nacional de Trânsito, para emitir faturas para os usuários. Isso garante que a concessionária identifique diretamente o proprietário do veículo e garanta o recebimento da receita. As informações seguem as diretrizes da lei geral de proteção de dados, a LGPD, e são utilizadas apenas para a finalidade específica.
Quanto às multas, estas são pagas diretamente à ANTT no momento, dentro do sandbox. “A concessionária cobra apenas a tarifa que ficou pendente, ou seja, a tarifa não paga pelo usuário, e já consegue chegar diretamente ao usuário devedor. Isso é muito importante, pois se a tarifa tivesse que ser paga ao governo e depois repassada legalmente, seria um processo muito complicado e demorado”, conclui.
Nos testes da CCR, entretanto, as multas só passarão a ser geradas depois deste mês de junho, quando completam 90 dias do início das operações dos pórticos. Mas os motoristas não terão excluídos os débitos junto à concessionária. Antes de gerar a multa, porém, o usuário tem até 15 dias para quitar o débito depois da passagem pelo pórtico.
Tarifação mais justa
Concessionárias e governos estão empenhados em fazer o modelo dar certo porque, mais do que uma via de praticidade e economicidade na gestão das rodovias, trata-se de um meio de tarifação mais justa, que permite a segmentação de trechos e uma melhor diluição da tarifa conforme o usuário trafega pela rodovia.
“Ou seja, mais pessoas pagam e todo mundo paga menos”, resume o gerente de Assuntos Estratégicos do Sistema Federação das Indústrias do Paraná (Fiep), João Mohr, responsável por coordenar trabalhos em áreas estratégicas como infraestrutura e logística de transportes.
Um exemplo prático de como o sistema pode ser bem aplicado é o trecho da BR-277 que conecta Curitiba a Paranaguá e as rodovias estaduais que ligam a 277 às praias do litoral paranaense. O segmento entra no Lote 2 das novas concessões rodoviárias do Paraná, com leilão marcado para 29 de setembro na B3, a Bolsa de Valores de São Paulo.
O trecho todo engloba tem cerca de 150 quilômetros, somando os cerca de 80 km entre Curitiba e Paranaguá da BR-277, mais 36 km da rodovia PR-508, conhecida como Alexandra-Matinhos, 14 km da PR-407, entre a BR-277 e Praia de Leste, e 20 km da PR-408, entre Morretes e Antonina.
Com uma única praça de pedágio, localizada entre Curitiba e Paranaguá, a cobrança será feita apenas uma vez do valor equivalente para a manutenção de todas as rodovias. Mas as rodovias estaduais litorâneas muitas vezes não são utilizadas pelo usuário que faz o trajeto principal. Ou seja, quem vai de Curitiba a Paranaguá pagará pelos 80 km percorridos o mesmo valor que quem vai de Curitiba a Matinhos, por exemplo, percorrendo 116 km.
É aí que os pórticos de cobrança automática entram, com a possibilidade de implantar cobranças em separado. “Se fossem praças de pedágio tradicionais, o custo fixo explodiria, o que resultaria em uma tarifa de pedágio elevada. Já com um portal eletrônico cobra-se o valor proporcional à manutenção de cada rodovia e, somados todos esses valores, eles seriam subtraídos do valor cobrado na praça principal”, explica Mohr.
Com isso, mais pessoas pagam, incluindo aquelas que atualmente não pagam pedágio, mesmo usufruindo de uma rodovia concedida. É o caso de quem trafega somente na região do litoral. Com tarifas proporcionais ao tamanho do trecho e desconto para usuários frequentes que usam tags, o modelo fica mais atrativo.
Modelo para o futuro
Os editais dos lotes 1 e 2 das novas concessões das rodovias paranaenses ainda não preveem o free flow por ser um projeto-piloto. Mas, de acordo com a ANTT, quando validado, a ideia é incorporar o modelo em outras concessões. Ou seja, a não inclusão no edital não impede que futuramente a concessão possa usar o sistema.
Ainda de acordo com a agência, além dos testes no Rio de Janeiro, que devem durar dois anos, e a implantação do sistema já prevista pela CCR RioSP na região da capital paulista, a EcoRioMinas, da EcoRodovias, também tem previsão de adotar a modalidade em 2027.
Além disso, a EcoPontes, também da EcoRodovias, solicitou recentemente permissão para desenvolver testes de um projeto-piloto de instalação do sistema free flow na Ponte Rio-Niterói. Por meio de Recurso para Desenvolvimento Tecnológico (RDT), recurso disponível nos contratos de concessão para aplicação em projetos de pesquisa, estão sendo desenvolvidos estudos e testes para analisar os impactos da implantação na ponte. Os resultados de todos os testes serão monitorados pela ANTT para futuras deliberações e regulamentações sobre o tema.
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