Jaime Lerner em encontro com a reportagem de HAUS, da Gazeta do Povo, na ocasião da celebração de seus 80 anos, em 2017.| Foto: Albari Rosa/ Arquivo/ Gazeta do Povo
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Ao longo de 30 anos de vida pública, Jaime Lerner desenhou uma longa trajetória de sucesso e controvérsias no Paraná. O arquiteto e urbanista dirigiu a capital paranaense por três mandatos e governou o estado por mais dois. Seu legado se estendeu para além das inegáveis benfeitorias urbanas da capital – onde instalou os ônibus expressos, criou parques, fechou a Rua XV para os carros – e da industrialização do estado. Ele deu vida a uma geração de políticos que comandaram a capital em anos seguintes, como Cassio Taniguchi (ex-prefeito, hoje no DEM) e Rafael Greca (atual prefeito, também no DEM).

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Filho de imigrantes judaico-poloneses, ele estudou em escolas israelitas até ingressar na Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde cursou Engenharia e Arquitetura, após a abertura da primeira turma do curso pela universidade, nos anos 1960. Ali, Lerner conheceu e firmou laços com muitos dos profissionais que estariam ao seu lado na criação e estruturação do Instituto de Pesquisa Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), em 1965, e na revolução urbana que realizaria à frente da prefeitura de Curitiba.

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Eram nomes como Lubomir Ficinski Dunin, Domingos Bongestabs, Abrão Assad, Manoel Coelho e Osvaldo Navaro. “O Jaime era um rapagão bacana, com a cabeça cheia de ideias e, principalmente, com uma determinação em empreender e realizar as coisas sem medo, simplesmente acreditando nos seus sonhos. Qualidade que pouca gente tem”, avaliou Coelho, recentemente falecido, em entrevista à Gazeta do Povo em 2017.

O prefeito com formação de urbanista  

Na década de 1970, auge da ditadura militar, os cargos eram nomeados. Lerner, então no partido Arena, base de sustentação do governo ditatorial, chegou ao Executivo municipal pela primeira vez graças a sua atuação como dirigente no Ippuc. Permaneceu de 1971 a 1975. A indicação de seu nome para a prefeitura, em 1971, deu então a Lerner a oportunidade de concretizar suas ideias ousadas e sustentáveis, colocando definitivamente Curitiba no mapa.

Foi no primeiro mandato uma de suas passagens mais conhecidas. Fechar a parte mais central da Rua XV para os carros em 1972 era algo controverso. Os motoristas estavam irados, iriam perder o roteiro pela via mais importante de uma ainda tímida Curitiba. Era o fim dos passeios observando as vitrines das lojas mais importantes da cidade. Os comerciantes eram contra.

Para lidar com o chumbo que vinha de todos os lados, Jaime Lerner precisou ser rápido. Esperou o comércio fechar as portas, exatamente às 18 horas de uma sexta-feira, e mandou descer toneladas de pedrinhas de petit-pavé. Nas 48 horas seguintes, centenas de trabalhadores montaram um mosaico de calçadão ordenado pelo urbanista, um rosto quase desconhecido de parte da população. Quando os comerciantes voltaram à labuta, na segunda-feira seguinte, já não dava tempo de barrar a obra: a XV era dos pedestres.

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Pouco tempo depois, sua gestão inaugurou o sistema de canaletas exclusivas para os ônibus e implantou o Sistema Integrado de Transporte Coletivo. O objetivo era dar conta do rápido crescimento da cidade, que a época contava com cerca de 750 mil habitantes. A solução: transportar o conceito do metrô para a superfície, por meio de um embarque rápido, poucas paradas e frequência dos veículos. Simples e eficiente, a solução foi adotada pelos curitibanos e replicada em cerca de 250 cidades mundo afora. Na capital, evoluiu com a inserção dos veículos articulados e biarticulados.

Lerner permaneceu na prefeitura de 1971 a 1975. Após sair, flertou com o partido rival do Arena, o MDB, em um episódio que lhe rendeu a antipatia da sigla. “Ele chegou a acertar com o [Euclides] Scalco [presidente regional do MDB]. Só eu e o Scalco sabíamos, era segredo. Mas eu telefonei para o Francisco Leite Chaves [senador pelo MDB] e contei. Chaves era muito novo na política e conversando com uma jornalista deixou vazar a informação. A moça publicou. No dia marcado para assinar a ficha, Lerner liga para o Scalco e diz: ‘eu não vou entrar no MDB’”, relembrou Sylvio Sebastiani, jornalista, filiado ao MDB na época, em 2017.

No mesmo período, Ney Braga (Arena), que acabara de assumir o governo estadual pela segunda vez, chamou Lerner para comandar Curitiba pela segunda vez. O arquiteto ficou no cargo até 1984. No período, ele já não era uma figura mal vista pelos curitibanos: o criador do “ônibus assassino” e “fechador de ruas” a essa altura já tinha construído uma imagem de bom gestor que o segurou no poder militar.

Mas o que bastava para a elite não bastava para o resto da população. Quando o regime caiu e o voto voltou a ser direto, na eleição de 1985, Lerner sentiu seu ponto fraco. “Eu não seria capaz de negar a competência de decorador de cidades do arquiteto Jaime Lerner. Parques e praças. Mas somente acessíveis para uma determinada faixa da população. Curitiba é linda, mas não é justa”, abriu assim um dos debates seu principal adversário ao Palácio 29 de Março naquela ocasião, Roberto Requião. O discurso colou. O MDB foi ao poder.

Caminho de Lerner ao governo do Paraná

Duas derrotas pareciam ter selado o destino de Lerner, agora no PDT, na terra das Araucárias: a disputa para a prefeitura em 1985 e a de vice-governador de Alencar Furtado (PMB) no ano seguinte. Foi quando Leonel Brizola, cacique do partido, o levou para o Rio de Janeiro. Era do mentor pedetista a ideia de transformá-lo em prefeito da Cidade Maravilhosa. Na capital paranaense, Requião parecia caminhar tranquilo para fazer de Maurício Fruet (PMDB) seu sucessor. Nenhum dos concorrentes parecia fazer sombra ao peemedebista.

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Nem Algaci Túlio (na época no PDT), um radialista popular que havia sido eleito o vereador mais bem votado anos antes. “Eu não queria concorrer, mas o partido precisava de alguém”, relembrou Túlio, que perdeu a vida para a Covid, à Gazeta do Povo.

“A ideia de desistir e apoiar o Jaime foi minha”, disse Túlio, a quem foi oferecida uma contrapartida. “Eu disse: ‘prefiro ganhar como vice do que perder como candidato’”, relembra. A dupla foi para o front em uma batalha que durou pouco mais de duas semanas – mas que o partido cravou em 12 dias para fazer referência ao número da legenda. “O Jaime foi designado prefeito nos outros dois mandatos, então não tinha muito apelo nas camadas populares. Ele precisava de um cara popular. Aí que deu a dobradinha. Eu levei o Jaime na periferia. A gente entrava nos botecos, tomava uma cerveja, comia uma banana. O Jaime dava a mão para o pessoal”, conta Túlio.

A candidatura explodiu e Lerner bateu Fruet com certa folga. De 1989 a 1992, o arquiteto regeu um mandato tão prolífico quanto midiático. Dali, só restava um caminho: o estado.

Mas o mesmo perfil de gestor que o havia alçado ao estrelato, foi um peso no estado. Lerner trouxe a indústria automobilística para o Paraná tentando diversificar o perfil econômico. Mas, para tornar o estado atrativo, concedeu pedágios a rodo nas estradas estaduais. Tais contratos, do primeiro mandato, são até hoje contestados e criticados, fruto de uma série de ações do Ministério Público.

Na campanha para a reeleição, em 1998, Lerner, que estava atrás de Requião nas pesquisas, baixou em uma canetada o valor do pedágio cobrado nas estradas paranaenses. Eleitoralmente deu certo: foi reeleito com 52% dos votos. Mas as consequências disso são sentidas até hoje. As concessionárias ganharam na Justiça o direito a recuperar os valores do período com uma série de aditivos. Foi, na concepção do Ministério Público Federal (MPF) o ponto de partida que permitiu uma série de propinas entre agentes públicos e empresas concessionárias.

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À frente do estado, Lerner acabou com a farra do Banestado passando o banco para a iniciativa privada, mas quis privatizar empresas queridinhas dos paranaenses. “Isso o desgastou: ações como os pedágios ou mexer em instituições como a Copel, que são aos olhos da população, uma memória afetiva. Talvez isso seja o que mais tenha marcado o segundo mandato de Jaime Lerner. Ele tinha o olhar voltado para a questão da administração e de alguma forma se distanciou da questão social. Mas isso é muito mais discurso do que na prática. Algumas medidas privatizantes não necessariamente vão causar algum impacto social. Assim como manter uma empresa pública não necessariamente reflete em melhora de vida e bem estar da população. Eram mais questões ideológicas”, avaliou o cientista político Hélio Ruben Godoy, cientista político e professor da Uninter, em 2017.

O analista aponta que o governador tentou se cercar dos acertos que o levaram a mártir na prefeitura. “Ele levou uma equipe de qualidade para o estado. O problema é que, no estado, talvez a coisa tenha degringolado. Até então, dentro da gestão da prefeitura não se ouvia acusações de mau uso do dinheiro público ou má gestão. No estado isso começa a se tornar mais evidente. Talvez em função da forma em que se faz política. Até hoje o Palácio Iguaçu tem que negociar com a Assembleia. E a assembleia é fisiologista, tem o toma-lá-dá-cá. Na hora de implementar os eixos estruturantes do estado, ele bateu de frente com o sistema já pré-estabelecido de como fazer a coisa”, apontou Godoy.

Algumas das ações resultaram em condenação por improbidade administrativa. Em 2011, chegou a ser condenado à prisão por dispensar licitação na construção de um trecho da BR-476 e PR-427. Reverteu a pena em multa. Manchado, Lerner manteve sua força na capital, onde a sua imagem de urbanista suplantou os percalços políticos. Mas nunca mais voltaria a ter chance no estado.

Nos últimos quatro anos de sua vida pública, Lerner (agora no PFL) bateu no fundo do poço. Algo curioso para quem, no início na década, era tido como um nome possível para o cargo mais importante do país. “Quando eu cheguei, Lerner estava politicamente desgastado. Tinham cinco 5 CPIs contra ele [na Assembleia Legislativa]. Eles me pediram para dar estabilidade política e fortalecê-lo com a pré-candidatura [á presidência]. Nenhuma destas CPIs era realmente séria. Eram questões realmente políticas. Em pouco tempo consegui extinguir as CPIs. Mas aí ele já não queria mais ser candidato”, relembra Alceni Guerra, chamado às pressas em Curitiba com uma missão. Era ano 2000. O ex-prefeito de Pato Branco, ex-ministro da Saúde e deputado federal iria chefiar a Casa Civil de Lerner.

O ex-prefeito de Pato Branco, ex-ministro da Saúde e deputado federal cumpriria uma missão. “Foi um pedido específico do Marco Maciel [vice-presidente da República então, PFL] e do Jorge Bornhausen [presidente do PFL]. Jaime [Lerner] era o candidato deles à presidência do Brasil [na eleição de 2002]”, relembra Guerra. “O Jaime construiu uma imagem nacional muito forte. Era tido como um excelente técnico. Ele conseguiu disseminar na elite essa sensação de que seria indispensável para o futuro do país”, diz. “Faltava apenas popularidade”.

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No fim, o caminho para o Planalto se tornou tortuoso demais para o político e urbanista.

Nos últimos dias, em seu escritório no Cabral, Lerner dizia não ter mais interesse em participar ativamente da política. Largou a carreira de vez ao fim do segundo mandato de governador, em 2002. Dedicou-se exclusivamente à arquitetura. “Tive sorte de sair da vida pública sem mágoas”, fez questão de frisar em 2017.