A Justiça do Paraná aceitou novamente que um cachorro seja qualificado como autor de uma ação judicial por maus-tratos contra animais. O caso foi registrado na 3ª Vara Cível de Ponta Grossa, nos Campos Gerais. O cão Tokinho "entrou" com um processo contra seu ex-tutor, de quem requereu o pagamento de R$ 10 mil a título de indenização por danos morais pelas agressões sofridas. A conduta, apesar de aceita nos tribunais paranaenses, não é consenso em outros estados do Brasil.
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Além da acusação criminal de maus-tratos contra o animal, que pode levar a 5 anos de prisão, multa e proibição de manter novos animais sob sua guarda, o agressor também está sendo processado na esfera cível – é justamente neste processo que Tokinho foi aceito como parte autora pela juíza Poliana Maria Cremasco Fagundes Cunha Wojciechowski.
De acordo com a ação, as agressões ao cachorro ocorreram em junho deste ano, na cidade de Ponta Grossa. Um homem de 25 anos é suspeito de ter batido em Tokinho com um pedaço de madeira. Câmeras de segurança da casa da mãe do suspeito flagraram a ação, e o homem foi preso em flagrante por agentes da Polícia Civil e da Guarda Municipal de Ponta Grossa. Ele responde aos processos em liberdade provisória. O cachorro Tokinho está em um abrigo provisório à espera de adoção.
O pedido para que Tokinho fosse reconhecido como parte do processo foi feito pela ONG Grupo Fauna de Proteção aos Animais, que atendeu o animal após as agressões. A juíza recebeu o pedido, mas reduziu o valor da indenização para R$ 5.820.
Juíza cita decreto revogado há mais de 30 anos para aceitar Tokinho em ação judicial
Em seu despacho, a magistrada citou um decreto assinado pelo ex-presidente Getúlio Vargas como justificativa para reconhecer a legitimidade de um cachorro como parte de um processo judicial. “Tendo em vista o reconhecimento da vigência do Decreto n° 24.645/1934, (...) é possível afirmar seguramente que, ao menos no Brasil, a capacidade de ser parte dos animais é prevista em lei, ou seja, o Direito Processual Civil Brasileiro contempla a possibilidade de animais demandarem em juízo em nome próprio”, apontou a juíza.
“A Constituição reconhece os direitos dos animais, não considera-os como meros objetos. No nosso entendimento, se a própria Constituição e outras leis esparsas reconhecem direitos dos animais, nada mais justo do que eles serem aptos a defendê-los perante os tribunais mediante representação”, disse, em entrevista à Gazeta do Povo, o advogado Vinícius Traleski, representante da ONG e do cachorro Tokinho.
À reportagem, ele confirmou que o pedido de inclusão do animal como parte do processo foi baseado no mesmo decreto de Vargas citado pela magistrada. Mas o texto apresentado tanto pelo advogado quanto pela juíza foi revogado há mais de 30 anos. Questionado sobre o fato, Traleski afirmou “não saber totalmente sobre o decreto ter sido revogado”, e apontou que o principal ponto da estratégia é gerar incômodo e controvérsia.
“Eu confesso para você que eu não sei totalmente sobre o decreto ter sido revogado, mas é um decreto de 1934. É certo que levanta muita controvérsia. O fato é que ainda que seja isso, a própria Constituição reconhece [os direitos dos animais], e a gente tenta mudar um pouco essa visão. Temos que desconstruir ideias, é uma luta contínua. O principal ponto nosso é pelo menos trazer isso ao debate, e incomodar mesmo. E ter a decisão favorável da juíza na nossa petição é muito gratificante”, completou.
A reportagem procurou a seccional paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Tribunal de Justiça do Paraná, para que ambos os órgãos se posicionassem sobre o caso, mas não obteve retorno.
Caso pioneiro ocorreu no Paraná em 2021
A primeira vez em que um cachorro foi admitido como parte em um processo judicial no Paraná foi em 2021. Naquele ano, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) reconheceu, por unanimidade de votos, a capacidade dos animais serem parte de demandas judiciais.
A medida, inédita no Direito brasileiro, foi tratada como um marco histórico pelo então coordenador do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal da UFPR, professor Vicente Ataíde Junior. “A conclusão do julgamento com integral provimento do recurso demonstra a relevância do tema para o direito brasileiro. O Paraná se mostra novamente pioneiro no tema de Direito Animal, seja como centro de pesquisas da temática na UFPR, ou pelo histórico avanço da efetivação desse precedente judicial por parte do Tribunal Paranaense”, destacou.
Em São Paulo, tentativa de incluir 30 cachorros em ação judicial foi rechaçada por desembargador
Em São Paulo, porém, o entendimento não tem sido o mesmo dos juízes e desembargadores paranaenses. Uma ação ajuizada em 2020 pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) pediu a reintegração de posse de um imóvel em razão de inadimplência. Os ocupantes mantinham 30 cachorros no local, e apresentaram recurso ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) pedindo que os animais fossem admitidos como parte do processo.
O desembargador Gilberto dos Santos, da 11ª Câmara de Direito Privado do TJSP, negou o pedido e classificou como lamentável a estratégia da defesa. Ao lembrar que a presença do advogado “é indispensável à administração da Justiça” conforme a Constituição, Santos reforçou que “o desempenho dessa elevada função exige seriedade e respeito, sem espaço para invenções ou gracinhas, tais como a que aqui se vê. É profundamente lamentável a linha adotada pela defesa, porquanto destoa do que se impõe, e se espera, no nobre exercício da Advocacia”.
O desembargador seguiu, citando o fato de que o ordenamento jurídico brasileiro ainda não contempla animais como sujeitos de direito, e tratou como “inconcebível” a “tentativa de inseri-los como ‘parte’ em processo judicial”. “O direito brasileiro, em especial o Direito Privado, por enquanto contempla apenas a ‘pessoa’. E é assim porque a sociedade é constituída de pessoas”, apontou Santos.
Nesta ação, o mesmo decreto de 1934 assinado por Getúlio Vargas foi citado pela defesa dos cachorros como justificativa para que a Justiça aceitasse os animais como parte da ação de reintegração de posse. A estratégia, porém, foi rechaçada pelo desembargador.
“Dito diploma legal consta revogado pelo Decreto 11, de 18.1.1991, e em nenhum momento, aquele Decreto nº 24.645 atribuiu efetiva capacidade processual para os animais, mas simplesmente dispôs que os animais seriam ‘assistidos’ em juízo (o que é muito diferente) pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais. Nem mesmo com a melhor das boas vontades é possível ver discussão de ‘direitos dos animais’, visto que a ação é de rescisão de contrato, o que nem de longe se confunde com o direito de proteção aos animais. Os animais, aliás, nada compraram nem têm nenhuma posse a ser protegida”, concluiu.
Justiça gaúcha negou presença de cães e gatos em processo por maus-tratos
No Rio Grande do Sul, a 3ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre entendeu, em uma ação por maus-tratos, que os animais não deveriam constar como autores. No caso, ocorrido em 2020, a juíza Jane Maria Köhler Vidal extinguiu a ação na qual oito gatos e dois cachorros, identificados com nome e sobrenome, foram indicados como integrantes do polo ativo da ação judicial.
A magistrada justificou a decisão levando em conta o Código do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul, que considera os animais domésticos e de estimação como sujeitos capazes de obterem tutela jurisdicional em caso de maus-tratos. Apesar desse regime jurídico especial, lembrou Vidal, os gatos e cachorros não podem ser aceitos como autores de uma ação.
“É inviável prevalecer a tese sustentada pelo procurador da intitulada parte autora para a inclusão de cães e gatos no polo ativo do processo. Impende consignar, também, que negar a possibilidade de que animais domésticos figurem como sujeitos do processo não significa que esses animais não humanos não devam ou não mereçam receber proteção da sociedade como um todo ou que lhes sejam negadas a existência de vínculo afetivo com os humanos ou a sua importância nas relações familiares”, afirmou a juíza.
Tribunal de Justiça da Paraíba também não aceitou cachorro como parte de ação judicial
Situação semelhante ocorreu na Justiça da Paraíba, onde o desembargador do Tribunal de Justiça da Paraíba José Ricardo Porto manteve decisão da 5° Vara Cível da Comarca de João Pessoa de não aceitar um cachorro como parte de um processo judicial.
Para o desembargador, “é indiscutível que os animais são dignos de proteção, não podendo ser submetidos a práticas que os sujeitem à extinção ou crueldade”. Ainda assim, afirmou o magistrado, a legislação brasileira não dá aos animais o mesmo tratamento das pessoas.
“É necessário distinguir a posição dos animais em um processo. Ora, é indiscutível que eles sempre deverão ser objeto de proteção contra quaisquer condutas que os submetam à crueldade. Todavia, essa salvaguarda que lhes é conferida pelo ordenamento jurídico não os alça ao mesmo patamar das pessoas (físicas ou jurídicas), que são as responsáveis por defender – em juízo ou fora dele – tais direitos. Em resumo, os animais são objetos (e não sujeitos) de direitos”, pontuou.
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