Um círculo de diálogo, em que se coloca pessoas frente a frente para falar de seus sentimentos e resolver conflitos. Pode parecer prática religiosa ou terapêutica, mas não é isso. Trata-se de uma atividade relativa à justiça restaurativa, abordagem que nasceu no sistema judiciário, mas que tem encontrado caminhos principalmente na educação, especialmente em tempos em que ameaças de violência e insegurança pairam sobre as escolas.
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A aplicabilidade em escolas vem mostrando resultados positivos Brasil afora, com cases pioneiros no Paraná, e é foco do Ministério da Educação (MEC) para implantação formal em instituições de ensino de todo o país. O movimento ganhou força depois dos ataques envolvendo escolas este ano - o último deles, em Cambé, Norte do Paraná, que deixou dois adolescentes mortos no início desta semana.
A justiça restaurativa é uma abordagem que muda a perspectiva sobre crime e conflito. Em vez de focar na punição, ela busca a reparação do dano causado. Pode ser uma alternativa em casos de menor potencial ofensivo, por exemplo, ou quando o acusado se compromete a cumprir medidas que possam suspender o processo penal. Mas isso não quer dizer que é necessariamente substitutiva a ele. A ideia central é que ela se aplique antes do crime acontecer, ou como alternativa complementar ao trâmite judicial.
O que a modalidade busca é uma mudança de foco e resolução da causa-raiz do conflito, estabelecendo diálogos mediados entre as partes envolvidas. “Nesse modelo, a figura da vítima ganha importância central, diferentemente do processo tradicional em que ela é mais uma testemunha. A justiça restaurativa permite identificar múltiplos responsáveis e entender as repercussões complexas nos prejudicados, como a comunidade e a sociedade como um todo”, explica Leoberto Brancher, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, membro do Comitê de Justiça Restaurativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e um dos precursores do tema no Brasil.
Dependendo da gravidade dos casos tratados, acordos extrajudiciais podem ser realizados adotando o modelo, especialmente em casos envolvendo menores, o que é permitido pela legislação desde a década de 1990, a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Já com adultos, a justiça restaurativa deu um passo adiante a partir dos acordos de não-persecução penal, inseridos no artigo 28-A no Código de Processo Penal, pela Lei 13.694/2019.
Como a prática se difundiu
A forma como a justiça restaurativa é instituída varia país a país, conforme abordagens e legislações próprias. O tema, em si, não é novo. Remonta à década de 1970 e é aplicado com sucesso em países como Nova Zelândia e Canadá especialmente desde a década de 1990.
No caso do Brasil, começou a ser impulsionado pelo Judiciário, nos idos de 2005, quando alguns projetos-piloto foram desenvolvidos especialmente nos estados do Rio Grande do Sul e São Paulo. “Esses programas focaram na área da infância e juventude, o que aproximou a prática restaurativa da educação”, conta o desembargador.
Desde então, varas que já trabalhavam em integração comunitária passaram a propagar a justiça restaurativa pelo país e o modelo foi formalmente adotado pelo CNJ em 2016, por meio de uma resolução que estabelece a organização de políticas estaduais de justiça restaurativa pelos tribunais.
E foi aí que se identificou que, o que funcionava na esfera judicial, poderia dar frutos nas escolas. Em junho de 2022, uma nova resolução do CNJ estabeleceu o apoio à justiça restaurativa nas instituições de ensino como parte da política nacional, por meio das varas de infância e de núcleos restaurativos instituídos nos municípios. E, depois, o Conselho Nacional de Justiça instituiu 2023 como o Ano da Justiça Restaurativa na Educação, com uma intensa campanha para implementar a abordagem em meio à crise educacional pós-pandemia.
O ministro da Educação, Camilo Santana, anunciou em abril que o MEC estuda a implantação de um programa que instituirá os círculos de paz nas escolas, prática relativa à justiça restaurativa (veja abaixo). A medida veio dias depois dos ataques a uma creche de Blumenau, que deixou quatro crianças mortas, no início de abril, e a uma escola em São Paulo, quando uma professora foi assassinada, no final de março. E promete ganhar mais visibilidade após o ataque à escola Helena Kolody, de Cambé, neste mês de junho.
No Paraná, experiência vira exemplo para o país
Maringá, no interior do Paraná, é uma cidade que percebeu antes que o próprio MEC o que podia fazer com o modelo nas escolas. Em 2017, em parceria com professores da Universidade Estadual de Maringá (UEM), onde funcionava o programa ProPaz de justiça restaurativa, a prefeitura iniciou um projeto-piloto com 5 escolas e 4 centros de educação infantil para implementar os chamados círculos de construção de paz.
“A ideia era levar para a escola a compreensão de que os conflitos existem, mas é preciso falar sobre eles para evitar que se transformem em violência”, conta a coordenadora do Núcleo de Justiça Restaurativa do município, Silvana Valin. Na prática, quando um professor identifica um caso de bullying, por exemplo, ele chama todos os alunos para o diálogo, reunindo-os em círculos. “É uma metodologia ancestral, inspirada nos ensinamentos indígenas, onde todos são considerados iguais. Essa abordagem é aplicada em diversos ambientes como forma de promover a justiça restaurativa”, explica.
Quando o projeto começou, 30 servidores, entre membros das equipes escolares e da Secretaria de Educação, foram capacitados em justiça restaurativa, círculos de construção de paz e comunicação não violenta para aprender a conduzir as práticas de diálogo.
Em 2018, passou-se à formação para os professores da rede municipal de educação. Naquele mesmo ano, o município instituiu a primeira legislação estabelecendo a justiça restaurativa na cidade, a lei municipal 10.625, que reconhecia a prática e reforçava a importância das comissões de paz nas escolas públicas municipais e centros de educação infantil.
Ano a ano, e de forma remota durante a pandemia, mais e mais facilitadores, entre professores e servidores das escolas, foram sendo formados pela prefeitura. Até que em 2019 uma nova lei (10.851) instituiu oficialmente a justiça restaurativa no ambiente escolar. “Todas as escolas do município passaram a ser obrigadas a aplicar as práticas, e cada escola deveria ter uma comissão de paz, com no mínimo duas pessoas capacitadas”, lembra Silvana.
Este ano, o município finalmente concretizou a meta de ter comissões de paz em todas as 116 instituições da rede municipal de ensino. A rede soma hoje 761 facilitadores que atuam na prevenção e transformação dos conflitos.
Falando sobre sentimentos
Silvana Valin explica que, nas práticas, as crianças são estimuladas a falar de seus sentimentos e expor situações de conflito entre alunos e, também, com professores. Os pais são envolvidos, já que muitas vezes as crianças trazem situações de casa para a escola.
“São sugeridos círculos completos uma vez por mês, com abordagens mais amplas, além das práticas de atenção plena diárias, com o que chamamos de checkins e checkouts. As crianças contam como estão se sentindo na chegada e na saída da escola”, exemplifica.
Temas como respeito em sala de aula e entre colegas são abordados. “E as atividades incluem questionamentos que incentivam a reflexão sobre questões de raça, aparência física e rótulos negativos.”
Dados ainda não foram computados, mas já se percebe diminuição no índice de denúncias e reclamações envolvendo conflitos no ambiente escolar. Daqui para frente, porém, os resultados poderão ser mais palpáveis, já que, com o programa plenamente instituído, desde março relatórios trimestrais devem ser enviados pelas escolas à promotoria de justiça do Ministério Público do Paraná na cidade e ao núcleo de justiça restaurativa da prefeitura para análise dos órgãos sobre a efetividade das ações.
Embora muitas cidades tenham avançado dentro das práticas de justiça restaurativa com programas próprios no país, para o desembargador Leoberto Brancher o exemplo de Maringá é uma marca para o Brasil, e está na vanguarda das políticas públicas. “Desconheço casos semelhantes, com todas as escolas dotadas de núcleos próprios, com facilitadores capacitados.”
No exemplo de Caxias, cidade do Rio Grande do Sul onde Brancher atua e que também foi uma das precursoras do movimento no país, as escolas param alguns dias no mês para realizar a formação dos professores. “Mas a abordagem com um modelo de lei estruturada para isso é relevante e merece ser copiada”, conclui.
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