Uma discussão acalorada tomou conta do Teatro São João, no centro da Lapa. Pessoas armadas esbravejavam durante a audiência pública que debatia o tombamento do setor histórico da cidade. Ofensas e ameaças partiam de quase todos os lados. Durante boa parte daquele ano de 1989 os membros do Conselho Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná que circulavam pelo município eram alvos de xingamentos por parte de uma parcela da população.
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Por desconhecimento e medo do que poderia representar, muitas pessoas se posicionaram contrários ao tombamento. Parte da sociedade simplesmente rechaçava a criação de um setor histórico na cidade, hoje integrante da Região Metropolitana de Curitiba, e ainda exigia que o tema fosse levado para o debate público.
Somente após a realização da audiência é que o conselho estadual aprovou no dia 13 de dezembro de 1989 o conjunto de Normas de Uso e Ocupação do Setor Histórico da Lapa, publicado no Diário Oficial do Estado do Paraná em 26 de dezembro do mesmo ano. Há quase 30 anos estava oficializado o tombamento do setor histórico da cidade, cujos debates e estudos tinham tido início em abril.
Formado por imóveis que datam dos séculos 18 e 19, o centro histórico é um dos cartões postais da cidade, que hoje recebe cerca de dois mil visitantes por mês. A área tombada é de 23,41 hectares, com 14 quarteirões, formada por 230 imóveis com variados graus de proteção. O mais antigo é a Igreja Matriz de Santo Antônio, erguida ao longo da segunda metade do século 18. Do século 19 são 38 edificações. Já na primeira metade do século 20 foram construídas 76.
Disputa política
O processo para tornar esse espaço histórico tombado foi tortuoso. Além dos discursos contrários e do cenário complicado tanto para os profissionais do conselho quanto para a população local, havia como pano de fundo uma disputa política. Uma polarização que aquecia ainda mais a discussão. Esses fatos remontam há 10 anos antes de o processo de tombamento pelo governo do estado ter início.
Em agosto de 1979, o então prefeito da Lapa, Sérgio Leoni, firmou convênio com a Universidade Federal do Paraná para a elaboração de um plano diretor urbano. Era uma proposta de desenvolvimento integrado para a cidade, que criou institucionalmente um ‘Centro Histórico’, delimitando uma área a ser preservada, além de estabelecer parâmetros de construção. Toda orientação contida naquele Plano Diretor foi transformada na Lei Municipal 734 em dezembro de 1980.
No entanto, no mandato seguinte, o então prefeito Wilson Montenegro apresentou em outubro de 1987 um projeto que visava modificar a lei que criava o centro histórico, reduzindo a área. “Esta alteração, ora proposta, se faz necessário face a inúmeros problemas que nossa cidade vem enfrentando com a falta de loteamentos para que o grande número de pessoas que aqui chegaram e aqui se radicam possam adquirir uma área para construção de suas moradias”, justificava Montenegro, no projeto de lei.
Após muita discussão na Câmara dos Vereadores, o projeto foi aprovado e sancionado em novembro. Porém, Leoni foi novamente vencedor das urnas e assumiria o cargo de prefeito novamente em 1989. Ele não havia concordado com a mudança no plano diretor. “Essa alteração do plano diretor realizada dois anos antes fez com que Leoni procurasse o Conselho Estadual de Patrimônio Histórico solicitando o tombamento oficial por parte do governo estadual do antigo ‘centro histórico’”, conta a então curadora do Conselho, Rosina Parchen.
Isso porque, conforme consta no livro “Lapa: um passeio pela memória”, editado pelo governo estadual, no decorrer de 1988 houve uma série de ameaças de demolições de edifícios localizados dentro do perímetro do então ‘centro histórico’ do município. Como não era um espaço oficialmente tombado e a lei municipal tinha sido alterada, não existia nenhuma obrigatoriedade de preservação.
Ao tomarem ciência dos riscos que as edificações antigas corriam, os membros do Conselho de Patrimônio fizeram estudos e inventários dos bens situados na região para redefinir qual área poderia ser protegida. Dessa forma, foi publicado o edital de tombamento do setor histórico da cidade em abril de 1989.
A parcela da população contrária ao tombamento do setor se mobilizou. Foram protocolados 23 pedidos de impugnação do processo. Todos foram negados. Parte desse grupo defendia, por outro lado, o tombamento individual dos bens. “A lei não previa que fosse criado um zoneamento para tombar toda aquela região”, ressalta Márcio Assad, que participou dos debates na época e hoje é coordenador geral de divulgação e eventos da prefeitura da cidade.
No entanto, o historiador Aimoré Índio do Brasil Arantes, que já atuava no Conselho Estadual de Patrimônio, explica que a lei possibilita esse tipo de tombamento. “Foram criados graus de proteção para cada bem. Os mais antigos e históricos possuem, por exemplo, um grau mais elevado de proteção. Isso tudo faz parte de um grande inventário e estudo que foi realizado na época”, explica.
Após todo o entrevero, e já com o tombamento oficializado, a situação na Lapa foi, aos poucos, normalizando e ficando mais calma. Um dos episódios que ilustram essa situação é narrado por Rosina Parchen. Em uma das visitas da equipe do Conselho de Patrimônio à cidade, um comerciante que chegou a se posicionar fortemente contra o tombamento do setor histórico se dirigiu aos funcionários.
“A gente pensou que ele ia questionar algo, mas ao contrário. Ele pediu ajuda para pintar a fachada da loja. Ele disse: ‘Meu espaço está tão feio, tem como vocês me orientarem em como proceder e manter esse espaço preservado?’ Essa cena mostra que as pessoas viram a importância do tombamento para a preservação histórica e para a memória da cidade”, destaca Rosina.
‘Projeto goela abaixo’
O coordenador geral de divulgação e eventos da Prefeitura da cidade, Márcio Assad, que se posicionou contrário ao tombamento do setor histórico da Lapa, alega que essa medida era desnecessária por já existirem bens tombados individualmente. Ele aponta ainda que o processo não iria ouvir a população local. “Queriam colocar esse projeto goela abaixo”, afirma.
Segundo ele, o então prefeito Sérgio Leoni não foi objetivo ao procurar o governo do estado. “Os bens históricos já estavam, em grande parte, tombados”, assinala. Além disso, Assad afirma que a lei de tombamento por si só é ineficaz. “A lei por si não garante preservação. Não tem uma política pública de preservação, nem fiscalização. Quem mantém esses espaços preservados é o povo lapeano”, completa.
Contraponto
No entanto, a então curadora do Conselho de Patrimônio, Rosina Parchen, rebate afirmando que a audiência foi realizada justamente para ouvir a sociedade local. “Além disso, a lei do plano diretor municipal que garantia a existência de um centro histórico foi alterada e essa área de preservação foi reduzida. Diante disso, visitamos a cidade para realizar os estudos e redefinir que área poderia compor esse setor histórico”, explica.
O historiador do Conselho, Aimoré Arantes, afirma que as fiscalizações são realizadas até hoje pelo órgão e também pelo Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural (Iphan), que tombou o setor histórico em 1998.
A importância da preservação histórica
O arquiteto José La Pastina Filho, que já foi superintendente estadual do Iphan, afirma que o tombamento é um mecanismo legal que garante a preservação de bens históricos. “Não tendo o tombamento, a memória da cidade se perde. Construções históricas acabam sendo demolidas e substituídas por prédios. Sem essa preservação, as cidades ficariam todas muito parecidas e não guardariam as suas particularidades” explica.
A arquiteta Anna Finger, superintendente substituta do Iphan no Paraná, aponta que o patrimônio histórico está relacionado à ideia de herança cultural, “que permite entender quem somos, nossas origens, e fomenta o desenvolvimento de laços de pertencimento e identidade”. “O patrimônio cultural – seja ele edificado, arqueológico ou imaterial – traz até o momento presente informações preciosas sobre nosso passado, por meio do qual a memória das diferentes gerações se mantém viva”, ressalta.
No caso da Lapa, ela explica que a cidade guarda um representativo acervo de arquitetura colonial de origem portuguesa, com influência dos grupos imigrantes alemães e italianos.
Turismo
Anna afirma ainda que o turismo cultural está relacionado à preservação do patrimônio cultural de um determinado lugar. “É sem dúvida é uma fonte de renda e deve ser considerado e direcionado para o incremento na qualidade de vida das cidades”, afirma.
Marcio Assad concorda que o centro histórico contribui para o incremento do turismo na cidade. “Mas prédios não falam. É preciso uma política de turismo que explique a história para os visitantes, com ações educativas”, afirma. É isso que, segundo ele, a cidade procura fazer para continuar atraindo turistas para a cidade.
“Recebemos muitos grupos escolares e para atrair mais pessoas buscamos realizar ações culturais, shows, artesanatos e pessoas que saibam contar as histórias dos locais, além de fazermos capacitações dos profissionais que atuam nos espaços históricos”, ressalta. Ele explica que o turismo contribui para o crescimento econômico da cidade. “Mas além da parte histórica, há um turismo ecológico muito forte na região”, aponta.
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