Resumo desta reportagem:
- Prevista para operar em capacidade máxima em 2024, a maltaria Campos Gerais é a maior já construída no mundo em uma única etapa e foi projetada pensando na duplicação da capacidade.
- Para fornecer a cevada necessária à produção do malte, produtores locais estão sendo capacitados e novas variedades desenvolvidas para a região, que deve alcançar uma área de pelo menos 70 mil hectares de plantio em 4 anos.
- Tecnologia de ponta será utilizada no empreendimento, com automação em todo o processo produtivo e manutenção 4.0. O objetivo é manter o padrão de qualidade e atender às demandas de produção no padrão ESG
- A maltaria vai atender não apenas às cervejarias multinacionais, mas também às pequenas e microcervejarias, com o malte base pilsen – que passará por processos de controle de qualidade rigorosos para atender a um mercado cada vez mais exigente.
A obra que se desvenda no caminho entre Ponta Grossa e Castro, no Paraná, diz muito pelo tamanho, mas vai falar tanto quanto pela qualidade de um produto apreciado e bastante consumido pelo brasileiro: a cerveja. A maltaria Campos Gerais, que replica o nome da região no meio-leste paranaense onde está sendo construída, é um exemplo de intercooperativismo que vai fomentar a produção da cevada no eixo São Paulo, Paraná e Santa Catarina. E que promete aumentar consideravelmente a capacidade de fornecimento de malte ao mercado nacional, tanto para os grandes players como para as microcervejarias, que demandam um produto diferenciado.
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Previsto para começar a operar em capacidade máxima já em 2024, o empreendimento é o maior do tipo já erguido no mundo em uma única etapa construtiva. “Direto do greenfield a uma maltaria de porte considerável”, enfatiza o presidente da Cooperativa Agrária, Adam Stemmer. Terá capacidade para produzir até 240 mil toneladas de malte por ano, o que corresponde a 14% do mercado brasileiro.
Faz sentido que a idealização do projeto viesse da cooperativa que tem sede no distrito de Entre Rios, pertencente a Guarapuava, região Central do Paraná. Tradicional colônia alemã, Entre Rios concentra os ativos da Agrária e conta com produtores que entendem bem de cevada, produção de malte e, claro, de cerveja.
A quantidade e qualidade das cervejas artesanais que se produz ali explica muito sobre a tradição. Não à toa, vêm de Entre Rios alguns dos principais desenvolvedores de blends para as multinacionais cervejeiras instaladas no Brasil.
Desde a década de 70 os produtores dos Campos de Guarapuava se especializaram no cultivo da cevada como uma alternativa ao trigo. Era o pontapé inicial para o boom da indústria cervejeira. “A partir de 1973 a cultura foi crescendo e essa cevada era transferida para São Paulo, para a maltaria da Antártica. E com o crescimento, por que não se industrializar no interior?”, conta Stemmer.
Em 1986, a Agrária comprou as ações da Cia. Antártica paulista, ficou como proprietária da maltaria e foi ampliando os ativos em etapas. Hoje a cooperativa possui 3 maltarias em Entre Rios, que produziram em 2022 cerca de 280 mil toneladas de malte.
De Guarapuava para os Campos Gerais
Mas a tradição que vira negócio precisa crescer. Novas áreas de cultivo e ativos capazes de processar os grãos com padrão tecnológico de ponta. A Agrária já vinha percebendo a necessidade de ampliar a produção de cevada e malte, e por isso juntou-se às cooperativas que dominam a região dos Campos Gerais.
Veio daí a nova maltaria, um empreendimento que congrega 6 cooperativas. Além da Agrária, Frísia (de Carambeí), Castrolanda (de Castro) e Capal (de Arapoti), a tríade que forma a Union, compõem a intercooperação, junto com a Bom Jesus (da Lapa) e Coopagrícola (Ponta Grossa). Juntas, elas congregam mais de 12 mil cooperados.
Uma peculiaridade da maltaria Campos Gerais é que o projeto já foi pensado com a possibilidade de dobrar a planta conforme a demanda por produção. E a outra, é que o objetivo é trabalhar com matéria-prima local, preferencialmente. Por isso, somente para esta primeira etapa da maltaria o estabelecido foi de uma área de 70 mil hectares de plantio de cevada disponível. O que vai ser feito em 4 anos.
Daí a junção do know-how de cultivo da Agrária com o das cooperativas que dominam a região. “Os Campos Gerais têm muita área disponível para o cultivo de cevada, mas a tradição do plantio ainda não está tão arraigada como nos campos de Guarapuava”, explica o presidente da cooperativa de Entre Rios.
As fundações de pesquisa mantidas pela Agrária e pela Union se uniram para repasse de tecnologias de cultivo e capacitação de produtores, já que a região dos Campos Gerais, com suas peculiaridades, demanda adaptação da cultura.
O plantio da cevada é semelhante ao do trigo, mas há particularidades sobre como manter o poder germinativo e o teor de proteínas, fundamentais para o resultado do malte. Por isso a necessidade de cuidados maiores no cultivo, colheita e pós-colheita. “Mas essa introdução da cultura vem com o tempo. Estamos bem otimistas que vamos ter bastante êxito junto com as outras cooperativas”, diz Stemmer.
As áreas de plantio nos Campos Gerais, neste caso, abrangem uma área ampla, que extrapola as fronteiras paranaenses. “Estamos falando do sul de São Paulo, passando pelo Paraná até o norte catarinense. Nessa faixa também há climas diferentes e estamos desenvolvendo novas variedades especificamente para a região”, detalha. Um trabalho que está em curso há dois anos, anterior à construção da maltaria, que começou em janeiro de 2022. E que só tende a crescer.
“Nossa ideia é trabalhar com pelo menos 60% de cevada nacional e o restante complementar com importada. Mas isso é o mínimo, o desejável é alcançarmos 100% de cevada nacional”, adianta o presidente da Agrária, que garante existir na região áreas de plantio suficientes para alcançar a autonomia, tanto por produtores vinculados às cooperativas como pelos independentes. O que favorece a maltaria em termos logísticos, inclusive.
Matéria-prima de qualidade e tecnologia de ponta
A nova maltaria promete trazer o que há de mais inovador em produção de malte. Totalmente automatizada, com manutenção 4.0 e equipamentos dotados de sensores, a planta foi inspirada nos modelos mais tecnológicos do mundo.
O que implica em um rendimento melhor e um produto mais estável, para que as cervejarias recebam malte com o mesmo padrão de qualidade. “O mundo demanda mais malte porque, além do crescimento do consumo, tem a migração para as cervejas puro malte. E, por outro lado, as cervejarias grandes têm também nas suas políticas a nacionalização da produção o quanto mais possível”, explica Stemmer.
Cevada nacional e com produção de baixo carbono estão dentro do pacote ESG das empresas, sejam elas as grandes multinacionais, como Ambev e Heineken – com quem a maltaria já tem boa parte da produção contratada –, sejam as cervejarias menores, que começaram a revelar a mudança no perfil do consumidor de cerveja.
Tanto que, além dos grandes players, a maltaria Campos Gerais vai atender às microcervejarias, as chamadas krafters, produtoras de cervejas artesanais, com malte especial. “Além das principais companhias cervejeiras do Brasil, temos pequenas, médias e microcervejarias como clientes. O número passaria de mil”, estima Stemmer.
Atualmente, os maltes especiais são importados e a Agrária faz a revenda. Além do pilsen, as variedades pale ale, trigo, Viena e Munique estão no cardápio da cooperativa.
A maltaria Campos Gerais, entretanto, atenderá ao mercado das microcervejarias com o malte base pilsen, com padrão atestado por departamento de qualidade assegurada, certificações de boas práticas de fabricação e testes em laboratório próprio.
Indústria e consumidor mais exigentes
Nada menos que o necessário para atender a uma indústria exigente em seus padrões e um consumidor que demonstra pender cada vez mais para a compra de cerveja de qualidade.
Para Paulo Petroni, diretor-geral da Associação Brasileira da Indústria da Cerveja (CervBrasil), a elevação da régua vem em uma crescente. “A nossa cerveja já é de excelente qualidade no geral, mas a gente sempre quer mais, porque nosso consumidor, ao longo do tempo e com a elevação da disponibilidade de renda para isso, não quer só consumo, ele quer qualidade”, enfatiza.
Trata-se de uma indústria muito ligada às tendências de mercado, que não são únicas, segundo ele. “Cada ocasião, faixa etária, de renda e região de consumo tem suas especificidades, e as empresas identificam para onde esse consumidor está indo”, explica.
Daí a constatação de um aumento no consumo das cervejas puro malte, como a Agrária já vinha percebendo. A CervBrasil não tem um levantamento quantitativo do marketshare, mas atesta que o movimento é real, com uma tendência do brasileiro a privilegiar esse tipo de produto, mais próximos dos padrões alemães.
Além disso, nota-se que as novas gerações trazem demandas como a sustentabilidade por trás da produção e o consumo consciente e responsável. “Isso é identificado em outros países e a gente já percebe no Brasil que a qualidade na degustação e acompanhamento da ocasião de consumo tendem a ser mais importantes que a quantidade de produto consumido. Esses atributos pesam na decisão de compra”, avalia.
Das grandes às pequenas cervejarias
Os brasileiros devem consumir 15,5 bilhões de litros de cerveja em 2023. Cerca de 96% dessa fatia de mercado está nas mãos das 3 principais cervejarias (além da Ambev e a Heineken, o Grupo Petrópolis) e os outros 4% pertencem às cerca de 1,3 mil cervejarias de menor porte. “De todo modo, é um volume expressivo”, considera Petroni.
Em 2021, conforme o último levantamento da CervBrasil com base em dados do Ministério da Agricultura, cerca de 60% do malte usado pelas pequenas e microcervejarias foi importado. Isso porque o setor trabalha em boa parte com maltes especiais, mais caramelizados e torrados. “Existem pequenas maltarias que têm se especializado no Brasil, mas o mercado ainda é muito pequeno. Por isso, geralmente são maltarias alemãs, britânicas e belgas, principalmente, que atendem a cervejarias do mundo todo com o malte especial”, contabiliza o presidente da Associação das Microcervejarias do Paraná (Procerva) e sócio da cervejaria curitibana Joy Project Brewing, Everton Delfino.
Depois de um boom há cerca de 5 anos, o mercado da cerveja especial começa a experimentar alguma retração no crescimento. A avaliação de Delfino vem ao encontro do que a Agrária e a CervaBrasil já percebiam, com as grandes cervejarias oferecendo produtos especiais. Mesmo que em uma escala não tão grande como das cervejas comuns, ainda com ganho de competitividade. “Em vez de escolher uma cerveja 100% local e artesanal, o consumidor opta em tomar uma comercial que também se chama especial, mas que é vendida a preços menores. O nosso produto é mais caro e o pessoal está adequando o bolso”, conta.
Além do malte, o lúpulo 100% importado encarece o produto dos krafters. E com a produção em escala menor, o impacto do preço da matéria-prima é considerável. Mas o que mais pesa para o setor é a carga tributária: pelo menos 56% do custo de produção vai para os impostos.
Nesse ponto, a possibilidade de obter pelo menos parte do malte de um empreendimento que produz no Estado é muito bem-vinda. “A logística já favorece bastante, com mais capacidade de atendimento especialmente para as cervejarias do interior do estado. Mas o diferencial de alíquota de ICMS conta muito e vai impactar positivamente”, espera o presidente da Procerva.
Do lado das cooperativas que viabilizam a maltaria Campos Gerais, o que pode-se dizer é que a expectativa é de crescimento. “Toda a infraestrutura está sendo preparada para a duplicação da capacidade. Depende dos clientes quando isso vai acontecer”, adianta Adam Stemmer, da Agrária. E, quando acontecer, será possível dizer que no Paraná existe uma das 10 maiores maltarias do mundo. Até lá, talvez, com malte feito a partir de cevada 100% de origem regional.
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