O Marco Legal do Saneamento acaba de completar três anos e, de lá para cá, a evolução no sentido de universalizar o acesso à água tratada e ao esgotamento sanitário tem sido lenta. Especialmente em regiões com índices mais preocupantes de falta dos serviços. Entre entregas adiadas e adequações na lei, o que se vê é um Brasil que corre atrás de investimentos para dar conta das metas e outro que ainda deve até mesmo a documentação exigida para comprovar capacidade econômico-financeira das concessões para o setor.
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Foi em 15 de julho de 2020 que o Brasil deu vigência à Lei 14.026, conhecida como o Novo Marco Legal do Saneamento. Pela legislação, a principal meta é garantir que até 2033 todos os municípios brasileiros atendam a 99% da população com serviços de água potável e ao menos 90% dos habitantes com coleta e tratamento de esgoto.
Para que isso aconteça, é preciso garantir os investimentos necessários. E um dos principais passos rumo a esse objetivo é que os municípios demonstrem capacidade econômico-financeira para as concessões.
A apresentação desses documentos foi estabelecida pelo Decreto 10.710/2021. “As companhias estaduais passariam por um processo de comprovação dessa capacidade, por meio de indicadores financeiros e demonstrações contábeis, para decidir sobre a captação de recursos. Mas das 3.900 cidades onde essas companhias atuam, 1.100 ainda não apresentaram a comprovação, o que levou o governo federal a editar novos decretos”, conta a CEO do Instituto Trata Brasil, Luana Pretto.
O dado é apresentado no estudo Avanços do Novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil 2023, divulgado recentemente pelo Trata Brasil em parceria com a GO Associados e com apoio institucional da Associação Brasileira dos Fabricantes de Materiais para Saneamento (Asfamas). As informações têm como base os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) 2021.
Os novos decretos ampliaram os prazos para a comprovação, estendendo as entregas até 2024, e trouxeram mudanças nos critérios dos processos. “Agora, municípios que não possuíam contratos com as companhias estaduais ou cujos contratos estavam vencidos podem participar do processo de comprovação, pois foram incluídos nessa nova regulamentação”, alerta Luana. São eles os decretos 11.466/2023 e 11.467/2023. E tramita ainda no Senado o projeto de decreto legislativo 98/2023, que suspende pontos específicos dos dois decretos mencionados.
Os decretos também retiraram a limitação de 25% do valor do contrato para a celebração de contratos de parcerias público-privadas (PPPs) e flexibilizaram a prestação de serviços por parte de estatais sem prévia licitação, no caso de microrregiões, aglomerações urbanas e regiões metropolitanas.
Também ficou decidido que na alocação de recursos públicos federais serão priorizados projetos licitados sob o critério de modicidade tarifária e antecipação da universalização do serviço público de saneamento.
“Outra questão importante é a regionalização, um processo que ainda requer mais desenvolvimento em 3 estados, que são Acre, Minas Gerais e Maranhão. Nos outros estados, onde a regionalização foi feita, ainda é preciso efetivamente implementar as unidades regionais”, menciona a CEO.
Regionalização e senso de urgência
A regionalização é um item importante do Marco Legal porque permite unir cidades menores e maiores para assegurar condições atrativas de investimentos para as concessões e PPPs.
A única preocupação com prazos alargados, para Luana, é reduzir o senso de urgência na resolução do problema. “Alguns municípios que buscavam soluções como arranjos regionais ou PPPs podem priorizar outras questões ao adiarem ações relacionadas ao saneamento básico. Isso pode ter reflexos negativos no alcance da meta até 2033.”
Soma-se a isso o fato de que justamente os municípios que não apresentaram suas documentações são os que possuem condições mais precárias e, consequentemente, os maiores desafios para levar os serviços de água e esgoto aos habitantes. Nestas cidades, a maior parte concentrada no Norte e Nordeste do país, vivem cerca de 30 milhões de brasileiros.
“O saneamento básico é uma política pública de médio a longo prazo, envolvendo prazos para licenciamento ambiental, elaboração de projetos e execução de obras, até que, finalmente, a população tenha acesso à água e ao tratamento de esgoto. Quanto mais demorar para encontrar soluções para os municípios pendentes, maior será o risco de não conseguirmos universalizar até 2033, pois o intervalo entre a adoção da solução e a concretização das redes de água e esgoto fica cada vez mais curto”, alerta a CEO do Trata Brasil.
Atração de investimentos
No contraponto, verifica-se que nestes três anos de Marco Legal do Saneamento muitos estados e municípios correram atrás de soluções. Nesse meio tempo, seja por meio de PPPs ou concessões, diversos processos licitatórios foram iniciados ou concluídos, incluindo a licitação de blocos regionais para a prestação dos serviços.
Pará, Sergipe, Rondônia e Paraíba investiram em projetos de estruturação com o Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) para concessões dos serviços de água e esgoto, previstas para ir a leilão entre 2024 e 2026. Foi este também o caminho escolhido pelo Amapá, Rio de Janeiro e por Alagoas – os dois últimos concederam blocos de municípios à inciativa privada. Enquanto em São Paulo, a opção é pela privatização da estatal Sabesp, prevista para ser licitada em 2025.
O Paraná foi na linha das PPPs de esgoto, assim como Ceará e Mato Grosso do Sul. O estado realizou o leilão da primeira delas para serviço de esgotamento sanitário em 16 municípios da região da capital, Curitiba, e litoral, no último dia 14. O consórcio vencedor foi Saneamento Consultoria, formado por Aegea, Perfin e Kinea, com investimentos previstos de R$ 1,2 bilhão para os próximos 24 anos e 2 meses.
E a estatal paranaense de saneamento, Sanepar, prevê ainda outros dois leilões de PPPs. No início de julho, a companhia lançou novas consultas públicas para contratação das próximas parcerias que disponibilizarão serviços de esgotamento sanitário para 76 municípios da região Centro-Leste e 119 municípios da região Oeste. O investimento previsto é de R$ 4,7 bilhões. Com as PPPs, a expectativa é que o estado alcance a universalização do saneamento até 2027, seis anos antes do determinado pelo marco regulatório.
Ainda no Sul do País, os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina também buscaram soluções nesse meio tempo. Destoando dos índices do Paraná, que completa a região e já fornece água tratada a 100% da população e esgoto a 80%, o Rio Grande do Sul optou pela privatização da companhia de saneamento estadual, a Corsan, adquirida pela Aegea e com contrato recém-assinado no valor de R$ 4,15 bilhões. Enquanto diversas companhias municipais de saneamento de Santa Catarina estudam PPPs de esgoto e a estatal de saneamento, a Casan, promete adotar o modelo de locação de ativos para as 10 principais cidades do estado.
A partir das informações públicas disponíveis para os municípios com projetos em estruturação, e pelo hub de projetos do BNDES, são identificados 29 projetos em andamento com potencial para impactar mais de 46 milhões de pessoas, os principais em fase avançada de licitação, com previsão de serem concluídos nos próximos três anos.
O que vem pela frente?
O Brasil ainda precisa investir R$ 538 bilhões, segundo o cálculo do estudo do Trata Brasil e da GO, para chegar ao cumprimento das metas do Marco Legal. A demanda total de investimentos previstos, que era de R$ 598 milhões para garantir a universalização, segundo levantamento do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) do Ministério das Cidades, já contou com R$ 44,8 bilhões investidos entre 2019 e 2021, mais uma média estimada de R$ 15 bi em 2022, se seguidos os valores dos anos anteriores. Os dados foram calculados a preços de dezembro de 2021.
Isso implica dizer que serão necessários investimentos médios anuais de cerca de R$ 44,8 bilhões, contabilizando os anos de 2022 a 2033, para dar conta das metas do Marco Legal do Saneamento. “Portanto, precisamos considerar uma média de investimentos que vai mais que dobrar em relação à média atual, de R$ 20 bilhões. Além disso, estamos falando de uma média nacional, enquanto diferentes regiões do país enfrentarão realidades distintas. Alguns estados demandarão investimentos significativamente maiores, enquanto outros precisarão de menos recursos”, analisa Luana Pretto.
Para a especialista, o Marco Legal possibilitou o estudo de diferentes formas de acelerar a universalização. E a abertura para a busca de alternativas está trazendo resultados positivos para estados e municípios. Mas ainda é preciso vencer barreiras como o entendimento da urgência do tema por parte de governantes e a garantia de segurança jurídica para investidores.
“Há estados onde o saneamento não é visto como prioridade e ainda é tratado como uma questão de obras subterrâneas que não geram votos. Acredito que já obtivemos muitos resultados positivos, mas precisamos de um arcabouço legal sólido, com decretos bem estabelecidos, para atrair investimentos no setor”, resume. “E sabemos que os governos nem sempre têm recursos financeiros para investir o todo necessário. Eles precisarão buscar financiamento e parcerias, mas para isso acontecer, é fundamental garantir a segurança jurídica no Brasil de forma geral.”
O resultado, aponta, é retorno social e, consequentemente, econômico para o país como um todo. “Agora o desafio é levar os exemplos positivos de quem está correndo atrás de investir em saneamento para outras regiões que ainda não priorizaram o tema”, conclui a CEO do Trata Brasil.
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