Há 40 anos a curitibana Mariângela Batista Galvão Simão, de 64 anos, dedica sua vida ao sanitarismo. Mas, pela primeira vez, encara o desafio de combater uma doença com contágio tão fácil e rápido, como a Covid-19, que tem se alastrado por vários países ao redor do mundo. Diretora-assistente da área de medicamentos e produtos de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS), é hoje a brasileira mais experiente que atua internacionalmente no combate ao coronavírus. Em um momento de turbulência e em meio a uma mudança de casa, concedeu uma entrevista à Gazeta do Povo – a última que pretende dar até o fim da pandemia – para contar sua trajetória na área de saúde pública.
Formada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), optou logo cedo em trabalhar no campo da saúde mais sensível aos impactos sociais, que é a saúde pública. Fez especialização e mestrado nessa área, logo depois da residência em pediatria. Desde então, passou a ocupar cargos públicos relevantes em diversos órgãos. Em Curitiba, passou pelas secretarias municipal e estadual da Saúde, nas quais ajudou na implementação e regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS).
Missão cumprida na capital paranaense, Mariângela partiu para o Ministério da Saúde, em 2004, com o propósito de atuar no departamento internacional de combate à aids, que logo depois virou um setor para cuidar também de outras doenças sexualmente transmissíveis. A maior dificuldade que enfrentou foi garantir o abastecimento de medicamentos para a população infectada. Seis anos depois, partia para trabalhar na Unaids, programa da Organização das Nações Unidas (ONU) para atender pacientes portadores de HIV. Lá, percebeu que o problema era essencialmente uma questão de direitos humanos, já que nem todos os países atendidos pela ONU atuam com distribuição e tratamento gratuitos de remédios. “Tínhamos dificuldade em conter a epidemia nos grupos mais vulneráveis socialmente”, explica.
Se a solução for cloroquina, medicamento não vai faltar
Mas, se no tratamento contra HIV a médica enfrentou dificuldade com a falta de remédio e distribuição para todos, para o coronavírus ela acredita que pode ser diferente. “Nesse exato momento, temos pelo menos 200 estudos clínicos acontecendo no mundo inteiro para encontrar um medicamento para tratar a Covid-19. A OMS também lançou um estudo que investiga quatro drogas já existentes que podem ser eficazes”, diz Mariângela.
A cloroquina, por exemplo, que está em teste pela OMS e hoje é usada para tratar pacientes com lúpus, malária e artrite reumatóide, se tiver sua eficiência comprovada contra o coronavírus, poderá ser produzida em larga escala e até exportada já que, segundo a sanitarista, a indústria farmacêutica brasileira tem bastante capacidade para produzir esse remédio.
Embora seja inevitável comparar a atuação do Brasil com a dos outros países no combate à pandemia, Mariângela é segura ao dizer que dificilmente se conseguirá traçar uma perspectiva fiel a qualquer outra nação, pois cada uma tem sua própria cultura social e um sistema de saúde diferente.
Para ela, a China tem conseguido contornar a situação – chegou ao contágio zero no dia 19 de março – porque o povo está acostumado a seguir regras rígidas e por isso obedeceu às ordens do governo de ficar em casa e não usar transporte público, o que foi reduzindo o contágio. Já na Itália, ter um sistema de saúde bom, segundo avaliação da OMS, não foi suficiente para dar conta dos milhares de atendimentos ao mesmo tempo.
Na Alemanha, o número de mortes é mais contido – quase 29 mil casos para 118 mortes – porque tem um sistema de saúde eficiente em tratar doenças de alta complexidade. “Os países têm jeitos próprios de lidar com a situação, que pode ser bom de um lado e ruim de outro. Mas o que observamos que dá mais resultado, sem dúvida, é testar o maior número possível de casos suspeitos, identificar os portadores, isolá-los e oferecer tratamento hospitalar para os casos mais graves”, explica.
Uma questão que preocupa a médica é que existe um problema que afeta quase que todas as nações, independentemente do estágio de desenvolvimento: a falta de leitos e equipamentos respiratórios para atender os doentes em estado mais grave. Segundo ela, nenhum deles está suficientemente preparado para uma quantidade grande de vítimas da Covid-19.
Vida em Genebra
Mariângela mora na Suíça desde 2017, quando passou a ocupar o atual cargo na OMS. Acostumada a morar em casas, está agora de mudança para um apartamento. Com a situação atípica causada pela pandemia, está se virando entre ajeitar um novo lar, dar atenção ao neto de 3 meses, atender às demandas da imprensa – que a procurou bastante nos últimos dias – e, sobretudo, coordenar uma equipe de 250 pessoas, que trabalha com ela no escritório da organização.
Por orientação da OMS, toda a equipe está hoje em home office e as inspeções em indústrias farmacêuticas foram canceladas, mas ela e a secretária continuam se deslocando ao escritório. “Não consigo fazer todo o meu trabalho de casa, embora tenha realizado inúmeras conferências online. Pego metrô para trabalhar, mas com todo cuidado. Higienizo as mãos com frequência, mantenho distância das pessoas e tomo banho assim que chego em casa”, conta.
A Suíça tem registrado, em relação ao resto dos países, números baixos de casos de doenças e mortes por coronavírus. Até o momento, o país tem cerca de 13 mil pessoas infectadas e 231 mortes. Mas os casos não estão divididos regularmente pelo território. A parte mais afetada é a chamada Suíça Italiana, que é a região que usa oficialmente o idioma italiano, com cerca de 300 mil habitantes. Ali, as medidas de contenção foram mais lentas e gradativas do que as adotadas por outros governos locais.
Contágio distinto, preconceito semelhante
Nas entrevistas que tem dado, uma das perguntas mais frequentes feitas a Mariângela é sobre a semelhança entre a pandemia de coronavírus que a sociedade enfrenta hoje e o combate ao HIV, que foi alvo de longos anos de trabalho da médica. “São contextos muito diferentes, principalmente de transmissão. O HIV não se pega casualmente, com um abraço, beijo ou aperto de mão, como o coronavírus. A única semelhança que os dois têm em comum é que geraram preconceito”, comenta.
No caso do coronavírus, a discriminação a que ela se refere é aos asiáticos, que foram tachados por alguns como culpados pela pandemia. “Isso é um grande erro. As pessoas se referem ao corona como um vírus chinês, mas poderia ter vindo de qualquer lugar.”
Especialista em apresentar propostas inovadoras para solucionar problemas na área de saúde. É assim que Nelson Arns Neumann, coordenador internacional da Pastoral da Criança, define a médica Mariângela Simão. “Desde a década de 90 até hoje participamos de inúmeras reuniões juntos, inclusive quando ela integrava a equipe da Secretaria Municipal da Saúde. Era impressionante a capacidade dela de resolver casos difíceis que apareciam. Quando ninguém sabia o que fazer, ela ia estudar e rapidamente se tornava especialista no assunto que precisava resolver”, conta Neumann.
Com um jeito atencioso e muito estudiosa, a médica tem uma característica que, segundo Neumann, a torna uma profissional bastante humana: ela se envolve com a população que cuida. Nos atendimentos que fez na área pública, ainda em início de carreira, sabia o nome de todos os pacientes das comunidades que atendia. Mariângela participou da criação do programa curitibano de assistência à gestante, o Mãe Curitibana, e foi, de acordo com o coordenador da Pastoral da Criança, peça-chave para a sua construção.
O envolvimento pessoal da sanitarista não está restrito ao público que atende no momento. Mesmo ocupada com um cargo importante na OMS, não esquece dos problemas sociais do Brasil. Vem ao país duas vezes por ano, ficou preocupada com os brasileiros assim que soube que o vírus apareceu na China e, quando visita Curitiba, aproveita para dar palestras. Na última visita, em 2019, foi à Pastoral da Criança para conhecer o Museu da Vida. A ligação com a Pastoral é antiga. Sua mãe, hoje com 92 anos, foi fundadora da Associação Nacional de Amigos da Pastoral da Criança.
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