Em um dos últimos plantões para pacientes com Covid-19 internados em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital privado em Curitiba, o médico intensivista se viu diante de uma situação inusitada. Uma família o ameaçava para que ele colocasse, a todo custo, o parente doente em algum leito — embora não houvesse nenhum disponível.
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Quando a família alertou que chamaria a polícia, o especialista prometeu a si mesmo que se afastaria, o quanto pudesse, dos atendimentos de pacientes com Covid-19. "Estamos em uma evidente crise absurda. Trabalho em vários hospitais de Curitiba e todos, públicos ou privados, estão experimentando problemas, quer seja de medicação, de respiradores, de pessoal", detalha o médico, que preferiu manter o anonimato por questões de segurança.
"Eu pensei [em me afastar] em vários momentos e sei que muitos colegas estão tomando essa decisão também. Hoje eu poderia estar trabalhando mais com Covid-19, mas existe um temor de trabalhar em uma UTI desassistida de medicação, o que agora é uma realidade", explica o especialista.
De acordo com Marlus Volney Morais, presidente do Sindicato dos Médicos no Estado do Paraná, não há um número exato de quantos profissionais médicos pediram o afastamento das funções durante a pandemia no estado, mas a estimativa é de, pelo menos, dez.
"Tivemos o relato de um colega que trabalha no litoral de que pelo menos cinco pessoas foram contratadas e chamadas para a linha de frente, mas desistiram de assumir. Lógico que todo médico tem um preparo para enfrentar a encrenca, mas boa parte dos profissionais está evitando fazer um atendimento ruim, por não estar devidamente preparado", explica Morais.
Em entrevista para a Gazeta do Povo, a secretária municipal de Saúde Márcia Huçulak confirma que uma das principais dificuldades, no momento, são os recursos humanos. "Abrimos 10 leitos de UTI sexta-feira [05/03], no Hospital do Idoso. Mas essa abertura requer recursos humanos, não adianta ter respirador, o monitor, a bomba de infusão, a droga e o oxigênio para monitorar e aplicar no paciente se não houver quem faça isso.[...] Agora a gente tinha contratado uma nova equipe de UTI. Dois médicos avisaram que não iriam assumir o cargo antes mesmo de começar e dois pediram demissão. Isso porque os profissionais de saúde estão esgotados física e emocionalmente. É muita gente doente chegando ao mesmo tempo. Estamos sem equipe."
Dados de uma pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz que avaliou as condições de trabalho dos profissionais da saúde no Brasil reforçam o impacto da exaustão pela pandemia. Dos 16 mil participantes, quase metade admite excesso de trabalho, com jornadas acima de 40 horas semanais, e 43,2% não se sentem protegidos no trabalho. O principal motivo, relatado por 23%, é a falta, escassez e inadequação do uso dos Equipamentos de Proteção Individual, como as máscaras. Mais da metade (64%) afirmou que tiveram de improvisar alguns equipamentos.
"A UTI da Covid é um ambiente muito especializado e muito pesado. Com a necessidade de abrir mais leitos, há a mistura de funcionários mais experientes com os menos experientes. Poucos estão aptos para uma UTI Covid. Normalmente já trabalhamos em uma situação de sobrecarga, e com o maior número de pacientes por médico na UTI, com maior cansaço, pessoas submetidas a uma situação muito desgastante, tudo isso pesa", ilustra o médico intensivista.
"Estamos nos segurando por um fio"
Falar em exaustão na pandemia remete aos médicos, enfermeiros e fisioterapeutas que estão na linha de frente dos hospitais. Mas o estresse alcançou também os profissionais que se encontram em setores à parte. Conversamos com uma farmacêutica-bioquímica que atua em um laboratório de análises clínicas de Curitiba. O setor teve o volume de trabalho tão aumentado em 2020 que, em seis meses, a profissional precisou ser afastada por diagnóstico de Burnout.
"A pressão vinha de todo lado. Sabíamos que não podíamos parar de trabalhar. Eu continuei com a mesma equipe, o mesmo número de equipamentos, e tivemos que continuar com o mesmo trabalho, além da demanda da Covid-19. A equipe está se segurando por um fio, e eu cheguei a um estado de exaustão que, no fim de agosto, me afastei por 60 dias por síndrome de Burnout", revela a profissional, que também preferiu manter o anonimato.
Ao retornar no fim de outubro, a farmacêutica se viu diante do aumento dos casos no estado, o que significou mais trabalho. "Manipulamos a amostra com todo o cuidado, mas é sempre um assombro. Essa semana tivemos a quebra de um equipamento de proteção coletiva que é crucial. Eu preciso trabalhar as amostras da Covid-19 dentro desse equipamento, então tivemos que mudar toda a rotina de trabalho para não expor os funcionários. Em um momento normal, o trabalho estaria suspenso até o conserto", explica.
Além de cuidar das amostras e garantir que todo paciente que faz o teste obtenha o resultado, a profissional descreve outra função que a pegou de surpresa. "Tenho recebido duas a três ligações e e-mails por dia de pacientes querendo saber a minha opinião sobre a conduta médica para ele. É a pessoa que está em pânico, que acha que o resultado positivo é uma sentença de morte, e ela não tem informação, ou não acredita naquela que recebeu", diz a farmacêutica-bioquímica.
Como resposta, ela diz que tenta, educadamente, explicar ao paciente que, se ele está sob responsabilidade médica, precisa confiar na conduta daquele médico, e que não cabe ao laboratório essa função. "As pessoas não sabem em quem confiar. Elas recebem muitas informações contraditórias."
Expectativa de "solução mágica" começa a incomodar médicos
O médico infectologista Jaime Rocha, membro da Sociedade Brasileira de Infectologia, e um dos profissionais que se dedicou a explicar o impacto da Covid-19 em Curitiba e no Paraná ao longo da pandemia, não se afastou dos atendimentos, mas relata que perdeu o sono e tem lidado com uma "ansiedade extrema" a cada novo caso. "Não por medo da doença, mas por medo de não conseguir uma vaga ou oxigênio se o paciente precisar."
Mas, além dos problemas estruturais, Rocha destaca outro aspecto que têm contribuído para o desgaste de todos os profissionais de saúde. "Estamos há um ano na pandemia e ainda tem pessoas discutindo muita coisa que não serve para nada. Você começa a se sentir desvalorizado, porque você estuda, demonstra, explica e eu entendo que as pessoas querem uma solução mágica, mas isso começa a incomodar e a cansar."
Segundo o infectologista, a relação com famílias que pressionam por certas condutas também desgasta emocionalmente os profissionais. "As pessoas acabam contaminadas por diversas opiniões e chegam exigindo coisas que a gente sabe que não servem para nada. As pessoas têm dificuldade de entender a limitação da medicina. Não é só essa doença que não tem tratamento, mas essa tomou uma dimensão tal que as pessoas estão sendo agressivas, cobrando algo que não é possível ao profissional entregar", completa Rocha.
O médico intensivista com que abrimos a reportagem compartilha dessa mesma angústia. "Conversando com os médicos, percebemos que impacta emocionalmente o sentimento de que a sociedade não embarcou nessa luta da forma como a gente esperaria. Estamos em uma sociedade dividida que não acredita no que está acontecendo. Tive muita discussão em grupos de amigos e até perdi o emprego em um hospital por uma situação em que se pedia para fingirmos que não estava acontecendo nada, que não existia pandemia", explica o especialista.
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