Se o preço da liberdade é a eterna vigilância, segundo a frase atribuída a Thomas Jefferson, não existe democracia digna desse nome sem que o trabalho dos governantes seja acompanhado e fiscalizado pelos governados. Nesse espírito, o Brasil tem vivenciado nos últimos anos uma disseminação dos observatórios sociais, os organismos da sociedade civil que se dedicam à análise dos gastos públicos com o objetivo de evitar desperdício e desvios.
Geralmente centrados nas administrações municipais, muitos já expandem sua fiscalização para outras esferas, como contratos de pedágio e compras das universidades estaduais. Voluntários e eventuais colaboradores remunerados, sem vínculos partidários nem subordinação aos órgãos alvos de fiscalização, se debruçam sobre editais e portais de transparência e dissecam os gastos da administração pública por meio de análise jurídica e comparações de preços e com processos licitatórios semelhantes. Quando é identificado algum problema, a princípio são procurados os gestores responsáveis. Se a resposta a esse questionamento não é satisfatória, podem ser acionadas outras instâncias: Ministério Público e Tribunal de Contas.
Outras atribuições dos observatórios incluem atividades educativas, como a capacitação de empresas locais para que participem de licitações, para que o dinheiro fique na cidade e seja facilitado o acompanhamento pelo gestor municipal, e a vistoria da execução de obras e serviços públicos – como o que rendeu este ano ao Observatório Social de Goioerê (Noroeste do Paraná) o segundo lugar na categoria Responsabilidade Social do Prêmio República de Valorização do Ministério Público Federal, junto com outros 20 observatórios.
Por meio dessa iniciativa, uma parceria entre a Transparência Brasil e o Observatório Social do Brasil (OSB), obras de creches e escolas públicas financiadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) são monitoradas em vários municípios brasileiros. “Nós ganhamos destaque porque, antes desse projeto, já fazíamos um monitoramento. A obra da Supercreche de Goioerê tinha uma metragem adequada, mas não verificaram o terreno, que tinha erosão e um desnível grande. Para ter estabilidade, o movimento de terra teria que ser muito grande, e o prédio não ia caber. A licitação foi cancelada, a prefeitura fez um estudo e uma rua lateral foi desafetada para que houvesse espaço para a obra”, explica o professor de gestão ambiental Anderson Pelói, coordenador do Observatório Social de Goioerê.
Dentro do projeto Obra Transparente, que foi finalista do Prêmio República, o órgão apresentou o relatório desse monitoramento e de outro, de uma escola de ensino integral que estava sendo construída no município. “Elencamos os problemas na obra, no telhado, nas janelas, no piso, e apresentamos ao poder público. Depois da entrega, fizemos uma nova vistoria e recomendamos ao município que acionasse a garantia junto à construtora, para consertar as patologias detectadas. Pegamos a obra no início e ficou muito boa, porque conseguimos que fosse adequada. O objetivo era que não tivéssemos esses elefantes brancos em Goioerê. A obra da Supercreche ainda está em andamento, mas a escola já foi inaugurada. Continuamos o monitoramento”, diz Pelói. O Obra Transparente inclui outros sete observatórios sociais do Paraná: Araucária, Campo Mourão, Cascavel, Foz do Iguaçu, Guarapuava, Paranaguá e Ponta Grossa.
Nem todo erro é má-fé
O Observatório de Gestão Pública de Londrina (OGPL) está completando em 2019 dez anos de atuação. “Ele surgiu de um grupo de pessoas comprometidas com o município que decidiram ter alguma iniciativa. A gente conversou e achamos interessante o observatório de Maringá, que deu muito certo. Conhecemos a experiência deles, inclusive participaram da nossa assembleia de fundação. Começamos bem ‘perdidos’, por ser uma experiência nova. Sentimos a necessidade de buscar patrocínios, para termos algumas pessoas remuneradas, já que trabalho voluntário é complicado”, aponta Roger Trigueiros, advogado e presidente do OGPL.
No período 2013-2018, o observatório analisou 334 editais do município, que totalizaram mais de R$ 670 milhões. Trigueiros, entretanto, diz que o OGPL não costuma contabilizar o que esse trabalho proporciona aos cofres públicos. “É difícil dizer o que o observatório conseguiu gerar de economia. Não temos esse valor. Até discordamos de outros observatórios que divulgam isso. Às vezes, nosso trabalho pode levar a uma ação pública; em outras, apenas esclarece uma dúvida. Então é difícil dizer que tal valor foi economizado graças à atuação do observatório. Temos prudência na divulgação das informações”, justifica.
O advogado destaca também que nem todo erro em edital é resultado de má-fé. “Muitas vezes, é um desconhecimento sobre licitação ou alguma coisa que vem do hábito, ‘sempre foi feito assim’”, explica Trigueiros.
Entre os casos emblemáticos dos dez anos de atuação do OGPL, o advogado cita um edital de limpeza pública que apresentava um sobrepreço de R$ 20 milhões e outro da área de saúde em que valores de máscaras de oxigênio estavam supervalorizados em mais de 1.500%.
A corrupção e os gastos públicos são questões sensíveis em Londrina, que nos últimos 20 anos teve dois prefeitos cassados e dois grandes escândalos envolvendo vereadores. “Temos uma compreensão de que o que aconteceu em Londrina acontece em todos os municípios. Temos uma sociedade civil bastante organizada, desde antes do OGPL. Em outros municípios, ocorrem situações até mais graves, a diferença é que eles não têm uma sociedade que atua de forma mais incisiva nesses controles. Atuamos muito com outros órgãos. Temos um relacionamento bom com o Ministério Público, outros movimentos, entidades, a controladoria (do município), as defensorias. A cidade evoluiu bastante desde que esses movimentos e o OGPL surgiram”, ressalta.
Em Curitiba, o Observatório Social do Brasil coordena uma rede nacional desses grupos. Já são 148 distribuídos por 17 estados, 32 deles no Paraná. “Aqui tem mais observatórios porque foi onde (a rede) começou. Mas nos outros estados há um crescimento até mais rápido. Em Santa Catarina, que está perto do Paraná em número de observatórios municipais (29), está sendo criado o primeiro observatório estadual do Brasil. Em Minas Gerais, há mais de cem cidades com pedidos para criação dos seus observatórios”, descreve Ney da Nóbrega Ribas, empresário e presidente do Conselho de Administração do OSB. A estimativa é que a ação dos observatórios vinculados ao OSB tenha gerado uma economia próxima de R$ 4 bilhões aos cofres públicos nos últimos quatro anos.
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