Mais de 4 milhões de venezuelanos deixaram o seu país desde 2015 por conta da crise política e social que vem assolando a região. Os dados são da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e Organização Internacional para as Migrações (OIM). Os cidadãos da Venezuela já são um dos maiores grupos populacionais deslocados do mundo, e os países latino-americanos recebem a vasta maioria – o Brasil é o quarto na América do Sul a abrigar os migrantes, atrás da Colômbia, Peru e Chile. Fora a dor de deixar para trás casa e família, em uma travessia que na maioria das vezes é feita a pé até Pacaraima (município no norte de Roraima), os cidadãos enfrentam períodos de vulnerabilidade até conseguirem se estabelecer nos novos países.
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O ritmo de fluxo de saída fez com que os países vizinhos tomassem medidas para acolher os venezuelanos. No Brasil, por exemplo, desde meados de 2018 ocorre a Operação Acolhida, uma ação das Forças Armadas em conjunto com outras agências governamentais e auxílio da ONU e de entidades da sociedade civil. Com abrigos em Pacaraima e também na capital Boa Vista, os imigrantes são recebidos nas acomodações com refeições, banheiros e atendimento médico. Além disso, a Operação tem feito parcerias com empresas de todo o país para que os venezuelanos consigam empregos em outras partes do país, em um banco de dados chamado de sistema acolhedor.
Segundo a tenente Stéphane da Silva, uma das integrantes da Operação em Boa Vista, não existe incentivo fiscal para as empresas. “É mais a questão do serviço social por parte dos empresários que desejam apoiar”, diz. O empregador deixa claro qual perfil necessita e os profissionais são selecionados pelo sistema. Com o trabalho garantido, o imigrante é levado de ônibus ou em um voo da Força Aérea Brasileira para a cidade ou o aeroporto mais próximo para que seja feito o que o Exército chama de interiorização, ou seja, realocação em uma nova cidade. Além disso, segundo a tenente, há apoio das agências da ONU e acordo com companhias aéreas brasileiras, que cedem assentos gratuitamente. Na nova cidade, é realizado apoio social ao imigrante com subsídio para aluguel no primeiro mês, até o recebimento do salário.
Dados da Operação Acolhida de dezembro de 2019 mostram que mais de 27 mil venezuelanos foram assistidos desde abril de 2018 (mas estima-se que, desde o começo da crise imigratória, mais de 260 mil venezuelanos vieram ao Brasil). Atualmente, a cidade que mais recebe os imigrantes via Acolhida é Manaus (cerca de 4 mil pessoas); Curitiba é a quarta (1,2 mil), e o Paraná um dos estados que mais ofertou empregos – foram 174 vagas preenchidas de agosto a dezembro de 2019.
“Temos recebido muitas vagas do Sul do país, principalmente no setor de agricultura”, fala a tenente, que destaca ainda a importância da redistribuição de pessoas possibilitada pela ação. “Boa Vista é uma cidade que está inchada, com poucas oportunidades de trabalho. Com a sensibilização que temos feito com as empresas em todo o país, há uma consciência maior sobre o problema”, acredita. Essa sensibilização à qual Stephanie se refere é a conversa dos integrantes da Acolhida em companhias por todo o país.
De Maringá, a empresa de transporte Transpanorama é uma das parceiras da Operação Acolhida, que iniciou processo seletivo para contratação de imigrantes em junho de 2019; dos 1.954 colaboradores, 38 são venezuelanos. Uma equipe foi a Roraima para fazer a seleção no abrigo em Boa Vista. “A primeira política foi efetivar todos os imigrantes assim que chegaram em Maringá, com as mesmas condições dos motoristas brasileiros. Eles ficaram em alojamentos montados pela empresa, na estrutura da matriz, inspirada na utilizada pelo Exército em Roraima”, explica o gerente de RH da Transpanorama, Jean Salgals.
Depois disso, os novos funcionários receberam um treinamento de 90 dias que incluiu não só a parte prática de direção mas também língua portuguesa, cultura brasileira, gestão financeira e legislação de trânsito. Outra medida tomada pela empresa para facilitar o processo de integração foi a de fornecer aulas de espanhol para colaboradores brasileiros que teriam maior interface com os venezuelanos. As famílias dos imigrantes chegaram à cidade após 90 dias, com orientação profissional e informações sobre o sistema educacional brasileiro, em uma parceria com o Instituto Sendas, de Maringá.
Vida na capital
Em Curitiba, uma das empresas que ofereceu vagas aos venezuelanos foi o Shopping Mueller – são sete funcionários estrangeiros em diferentes áreas do shopping, como atendimento e setor administrativo. No início, o shopping teve dúvidas sobre a barreira da língua. “Mas foi uma grata surpresa. São pessoas que vieram ao Brasil com uma disposição incrível de recomeçar, de fazer parte. Os lojistas aderiram e a diversidade foi bem interessante, ocorreu uma troca ótima com os funcionários brasileiros”, destaca a superintendente do Mueller, Daniela Baruch. O shopping também firmou uma parceria com o Sesi Paraná para que os estrangeiros possam aprender português e revalidar seus diplomas – muitas pessoas com ensino superior trabalham atualmente em vagas operacionais.
Auxiliar de auditoria no Shopping Mueller, Carlos Ramos, 27 anos, chegou ao Brasil em maio de 2018. Morou em Boa Vista e Rorainópolis antes de chegar a Curitiba em junho do ano passado. Decidiu, por conta própria, tentar a sorte na capital paranaense após assistir a vídeos sobre a cidade no YouTube. “Via que era uma cidade legal para morar, juntei dinheiro e vim. As pessoas aqui ajudam muito e as oportunidades para crescer e viver são muito boas, mas é preciso trabalhar e estudar para tudo sair bem”, diz ele, que costuma passear pelo Jardim Botânico em suas folgas do trabalho. “É o melhor lugar aqui de Curitiba”. Com o trabalho fixo, conseguiu trazer da Venezuela a irmã, Yolicar, que trabalha em uma loja de brinquedos no centro da cidade. Os pais continuam na Venezuela. “Eles não querem vir para cá por causa da idade e por medo de perder a casa”. Carlos não tem planos de voltar ao país natal. “Se as coisas melhorarem por lá, vai demorar uns 10 anos. E nesse tempo eu posso fazer a minha vida aqui no Brasil, formar minha família, conseguir outras coisas. Voltar seria começar do zero”.
Foi sua origem imigrante – de uma família de libaneses fugida da guerra civil – que impulsionou o empresário Rachid Cury, proprietário da rede de restaurantes Kharina, a abrir oportunidades de emprego para imigrantes e refugiados. Desde a vinda de haitianos ao Brasil, a partir de 2010, Cury iniciou as contratações. “Fizemos alguns testes e gostamos do resultado. É para eles terem uma primeira oportunidade de se estabelecer no Brasil”. Hoje, a rede conta com funcionários do Haiti, Venezuela, Chile e Paraguai.
Cury nunca precisou lidar com situações de xenofobia por parte de clientes ou funcionários brasileiros. Segundo ele, o freguês enxerga a diversidade como positiva no negócio. “Em Curitiba as pessoas são muito receptivas, meus funcionários trabalham de uma forma leve e tranquila e nunca teve nenhuma conversa sobre tirar a oportunidade de outro, não tem isso. Os clientes, quando percebem que o funcionário é de fora, falam mais devagar, repetem o pedido. No geral o público lida bem, tem uma empatia muito grande”. A miscelânea de idiomas também ajuda a todos: Cury conta que um de seus funcionários vindos do Haiti era professor de inglês e estava ensinando a língua a outros colegas da cozinha no dia a dia. “E aí você percebe o pessoal começando a aprender algumas palavras em uma segunda língua, é muito bacana. Nosso papel é acolher”.
Meta: trazer o pai ao Brasil
Fantine del Rosario Soto Portella, 22, é uma das funcionárias venezuelanas na Rede Kharina e chegou ao Brasil há três anos, diretamente em Curitiba. Uma tia, que vive nos Estados Unidos, bancou a passagem de avião para que a moça viesse à cidade encontrar a mãe, que já vive na capital há 10 anos. Fantine morava em Caracas com o pai, Jose Gregório Soto, jornalista e publicitário, que tinha uma agência de comunicação. “Eu era o braço direito dele. A gente fazia trabalhos grandes, para a Disney, McDonald’s. Nosso último trabalho foi em 2015, para o filme Velozes e Furiosos. Depois disso, a empresa faliu por causa da crise”. A jovem, que estudava Engenharia Ambiental na Universidade Marítima do Caribe, relata que não havia mais condições de ficar na Venezuela. “Eu me mantinha com o pouco dinheiro que a minha mãe mandava para mim e meus irmãos. Tudo ficou muito caro. Com um salário mínimo no Brasil você consegue pagar um aluguel. Lá, só consegue comprar um frango”.
A atendente, que considera os brasileiros acolhedores e curiosos em saber de onde ela é e como chegou ao Brasil, não sabia português, mas aprendeu no cotidiano com colegas e outros amigos brasileiros. Sua palavra preferida no idioma é saudade. “Eu acho muito bonita, em espanhol não existe”. Fantine pretende voltar a estudar (quer cursar engenharia na UFPR) e trazer o pai ao Brasil em 2020 – os irmãos já vieram. “É a minha grande meta para esse ano. O máximo que fiquei longe dele foram quatro dias”, fala a moça, que mantém a comunicação com o pai via WhatsApp, e fica aflita quando não consegue contato por causa da queda do sinal de internet ou de energia, comuns na Venezuela. Com a empresa falida, o pai de Fantine sobrevive com a ajuda de familiares. Recentemente ela enviou R$ 50 para que o pai comprasse comida (o suficiente para pouquíssimos dias).
Mais mulheres
A tenente Stephane salienta a importância da inclusão de mais mulheres imigrantes no mercado de trabalho. São elas, junto com os filhos, as mais vulneráveis, e que permanecem pelo maior tempo nos abrigos da Operação Acolhida em Boa Vista. Hoje, o projeto tem uma parceria com a ONU Mulheres para a inserção das trabalhadoras, tanto na sensibilização das empresas como na qualificação profissional: por meio de parceria com o Senac, cursos de promotora de vendas, hotelaria e língua portuguesa são ofertados para as mulheres abrigadas. “Ver essas pessoas reestruturarem suas vidas, e não de uma forma paliativa, mas com estrutura e emprego, é muito gratificante”, ressalta a tenente.
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