“Só quem participa de expedições científicas pode avaliar o trabalho a ser enfrentado pelos pesquisadores que as integram quando se dirigem a locais afastados de sua sede. São miríades de detalhes a serem atendidos. Nada pode ser esquecido ante a possibilidade de colocar em risco toda a programação pré-estabelecida”.
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Esse é um dos trechos do livro Cartas da Antártica (publicado em 1985), em que o cientista e pesquisador paranaense Metry Bacila narra as suas idas a região – o médico, doutor em bioquímica, foi um dos idealizadores do que hoje é o Programa Antártico Brasileiro (Proantar), que coordena pesquisas científicas no continente da Antártida, na Estação Antártica Comandante Ferraz. Seu legado gerou frutos ao longo das últimas décadas e inseriu o Paraná e outros pesquisadores nessa exploração ao continente gelado; recentemente uma equipe coordenada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde Bacila se formou e lecionou, esteve em uma expedição trabalhando com ciclo de carbono.
A estação foi reinaugurada no último dia 15 de janeiro; em 2012 um incêndio destruiu as instalações. A nova base brasileira é apontada como uma das mais modernas da região, que tem estatuto de reserva natural dedicada à ciência e à paz. Em 1998, os países que têm bases na região assinaram o Protocolo de Madri, que proibiu mineração e exploração de petróleo no continente por 50 anos (ou seja, até 2048).
Nascido em Palmeira em junho de 1922, de uma família de origem egípcia, Bacila se graduou em Medicina pela UFPR no final dos anos 1940, influenciado por um de seus tios, Gabriel, o primeiro médico da família. Nunca clinicou – seu objetivo sempre foi a pesquisa, e tornou-se uma sumidade na área de Bioquímica. Segundo o neto, Matheus Bacila, ele defendeu quase simultaneamente sua tese de doutorado junto com a graduação. Na sequência, ganhou uma bolsa de pós-doutorado na Argentina e estagiou com ganhadores do Nobel de química. Em 1952, já professor titular da UFPR e casado com Célia Schiffer Bacila (cuja união durou 60 anos, até a morte de Bacila, em 2012), foi para um segundo PHD em Chicago, nos EUA. Teve passagens por universidades americanas (como professor visitante na Universidade de Nova York) e europeias.
“Meu avô sempre foi uma pessoa muito focada no trabalho, era a coisa mais importante para ele. Publicou quase 500 artigos científicos ao longo da vida, em vários periódicos, e foi uma pessoa não só importante nas pesquisas e descobertas, mas de pioneirismo institucional”, diz o neto, criado por Metry e Célia e também médico. Foi cursar Medicina, claro, por influência do avô, mas escolheu um campo diferente: é residente na área de Psiquiatria.
O pioneirismo institucional ao qual Matheus se refere é o modelo criado por Metry Bacila dentro da UFPR de congregar cadeiras de uma área (no seu caso, a Bioquímica), o que viria a ser no futuro o Departamento de Bioquímica. Também lançou uma pós-graduação na área. Na sequência, foi convidado para ser professor titular na Universidade de São Paulo (USP), onde ficou até o fim dos anos 1970. “O que era inédito na época, porque era preciso fazer concurso” relembra Matheus.
Esse fato, diz, foi registrado em jornais cujos recortes estão em um acervo de documentos mantidos pelo neto e organizados por ordem cronológica, a partir de 1940. Jornais, certificados, prêmios, comendas e títulos (como o de primeiro membro da Academia Brasileira de Ciências, em 1959, e o de Doutor Honoris Causa da PUCPR, entre outros) fazem parte da documentação, além de cartas, tanto pessoais como trocadas com outros cientistas. “É um resgate não só da história do meu avô, mas da história da ciência também”, acredita Matheus, que recorda da disciplina do avô para o estudo e a ciência, até o fim da vida. “Ele acordava às 5h30 da manhã para estar no escritório dele trabalhando. Aos 90 anos, já debilitado e em cadeira de rodas, alunos dele vinham trazer dissertações de mestrado e teses de doutorado. Ele era tão meticuloso que corrigia vírgulas, lembro da caneta vermelha colocando a vírgula e os acentos”.
As expedições
Na época em que lecionou e pesquisou na USP, Bacila passou a se dedicar à biologia marinha, além de participar das discussões sobre a formação do Proantar junto com o hidrógrafo e oceanógrafo Luiz Antônio de Carvalho Ferraz. Logo após a sua aposentadoria, em 1978, foi convidado a retornar ao Paraná pelo então reitor da UFPR, Ocyron Cunha. Cria o Centro de Estudos do Mar da universidade (em Pontal do Sul, litoral do estado), hoje referência nacional em biologia marinha, e insere a UFPR na pesquisa na Antártica, reunindo pesquisadores e ex-alunos dedicados ao tema. Nesse momento já havia sido realizada viagem (em 1983) de reconhecimento no continente para a construção da Estação Antártica Brasileira, batizada de Comandante Ferraz (em homenagem ao pesquisador, peça fundamental no convencimento do governo brasileiro sobre a importância da estação de pesquisa), que começou a operar em 1984.
“Todos os laboratórios de biologia foram projetados por ele e pelo seu grupo de pesquisadores. Na expedição de 1985, meu avô foi com o grupo dele, e as pesquisas foram de fato inauguradas”, relata Matheus. Um dos integrantes deste grupo é o pesquisador Edson Rodrigues, professor da Universidade de Taubaté (SP) e orientando de Bacila em seu doutorado na USP, no fim dos anos 1970. “Nessa época ele já participava das discussões do programa antártico brasileiro”, fala. Quando foi convidado para se juntar ao grupo que ia ao continente gelado, se surpreendeu. “O professor Bacila pensou em uma equipe para trabalhar com bioquímica e fisiologia de organismos antárticos. Era uma possibilidade pesquisar coisas diferentes. Nós não tínhamos ideia dos organismos que íamos encontrar.”
O Bacila é um ícone da ciência brasileira, um pesquisador com projeção internacional. O que sou hoje devo muito a ele, que sempre questionou o rigor científico das pesquisas, de só publicar um dado quando se tem muita certeza. Ele me ensinou a ter uma postura profissional, de respeito pela ciência
Edson Rodrigues, professor da Universidade de Taubaté, orientando de doutorado de Metry Bacila e que participou da primeira expedição à Antártica
Essa expedição científica, que Edson define como “completa”, gerou até uma nova tecnologia para capturar os peixes usados nas investigações. As armadilhas levadas pelo grupo não funcionaram, e Bacila entrou em contato com um pesquisador alemão, que usava uma rede de esfera. “Ele foi muito legal conosco e nos deu uma rede, que foi trazida ao Brasil para ser reproduzida, e então passamos a pescar com essa tecnologia”.
Em 1986 e 1987 Bacila ainda participou in loco das expedições no continente. Mesmo não estando presente fisicamente dali em diante, sua dedicação ao tema perdurou até o fim da vida; ele comandava projetos e chefiava pesquisadores que iam para lá. Edson, por exemplo, participou até a operação 33 e, em 1992, viajou para a região em um navio quebra gelo japonês, fruto de uma cooperação científica com japoneses, estabelecida por Bacila. “Fomos até Tóquio e embarcamos em uma expedição de cinco meses. Foi outro tipo de aprendizado, e devemos isso ao professor Bacila, que sempre teve o entendimento de conviver com outras realidades científicas” destaca Edson.
“Espetacular"
Ao seu neto e familiares, Metry Bacila definia o continente como “absolutamente lindo”, com uma sensação de paz inigualável; nas inúmeras palestras que deu sobre o tema, ele costumava mostrar uma série de fotografias. “Ele trazia um deslumbre em relação à época em que passou lá. Eu mesmo por um tempo desenvolvi um interesse em trabalhar nisso, por conta da pesquisa que ele fazia” confidencia o neto. O ambiente pacífico, mesmo com o frio intenso e as mudanças bruscas de vento e paisagem eram ideais para mergulhar no trabalho, relata a pesquisadora científica Maria Ivete Carboni Malucelli, ex-aluna de Bacila e também integrante das expedições antárticas, onde estudou o comportamento bioquímico de organismos antárticos. Ela, que trabalhou no Instituto Butantã de São Paulo por 28 anos, foi ao continente inúmeras vezes, sempre sob a coordenação do professor Bacila, que ela diz ser seu “pai científico”. “Ele tinha uma boa vontade de explicar tudo nos mínimos detalhes. De pesquisa antártica, fiz 29 artigos com ele, que fez o seu investimento científico todo no Brasil. Ele queria elevar a pesquisa brasileira”.
Outras descobertas
Antes de se apaixonar pelo tema Antártica, Metry Bacila pesquisou e descobriu uma série de inovações importantes para a área de medicina e bioquímica. Uma delas foi a revelação, nos anos 1960, de uma enzima chamada galactose oxidase. “Depois, outros pesquisadores australianos descobriram que ela tem propriedades anticancerígenas, e é indutora do interferon, usado no tratamento de vários tipos de câncer”, explica Matheus. Todos os direitos dessas e de outras pesquisas eram entregues sempre à universidade. “Ele era abnegado de qualquer coisa material. Lembro de ele claramente me dizer que os interesses econômicos não podem estar acima dos interesses dos homens de pesquisa”.
Vida em livro
A história de Metry Bacila em breve será conhecida em uma biografia, organizada pelo neto Matheus e escrita pelo jornalista Diego Antonelli, autor de livros sobre a história do Paraná. A previsão de lançamento é junho de 2022, ano do centenário do pesquisador. Outra publicação prevista é uma reunião dos textos literários escritos pelo cientista, que também foi membro da Academia Paranaense de Letras. Além disso, a família pretende reeditar Cartas da Antártica, uma compilação de colunas escritas por Bacila e publicadas na Gazeta do Povo naquele ano de 1985; ele foi convidado pelo então diretor da Gazeta, Francisco Cunha Pereira, para relatar curiosidades da expedição. “Na época foi um fato muito notório para o Brasil, e essa experiência foi narrada por ele semanalmente”, lembra Matheus. “A pesquisa no Brasil e no Paraná eram muito incipientes. Meu avô teve esse pioneirismo de criar instituições a frente do seu tempo para formar pesquisadores e professores” frisa o neto.
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