Com 5.097 votos nas eleições municipais de 2020, o advogado Renato Freitas, conquistou a terceira cadeira do PT na próxima legislatura da Câmara Municipal de Curitiba. Mestre em direito e oriundo de comunidades da periferia, aos 37 anos, quer que seu mandato sirva para transformar a realidade de famílias como a sua.
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Freitas nasceu em Sorocaba, no interior de São Paulo, em 1983. Sua mãe havia migrado da cidade de São José de Princesa, no Sertão da Paraíba, ainda pré-adolescente, para tentar a vida no município paulista. Lá, ela conheceu seu pai, com quem o advogado teve pouco contato. Com a mãe e os irmãos – um mais velho, e uma mais nova –, passou a vida toda em Curitiba e região, sempre em bairros da periferia. “Logo que nasci, viemos para Almirante Tamandaré. Fui registrado no cartório do Barreirinha”, conta.
No município da região metropolitana, morou no Jardim Graziela até os dois anos de idade. De lá foi para Piraquara, onde viveu a infância e o início da adolescência na Vila Macedo, em uma área de ocupação. “Morávamos em barraco de madeira, com banheiro para fora, na frente da valeta, com rua de terra. Foi uma realidade muito impactante, considerando que Piraquara é até hoje um dos municípios mais violentos do Brasil.”
Foi salvo pela palavra do rap, afirma. “Na quebrada, não tem muita alternativa. Mas quando eu tinha 7 ou 8 anos, estava entendendo melhor o mundo, estavam começando a sair os CDs mais preciosos da história do rap nacional”, diz, citando ‘Holocausto Urbano’, de 1990, e ‘Raio X Brasil’, de 1993, do Racionais. “O disco de 1997 dizia já em seu título: ‘Sobrevivendo no Inferno’, ou seja, era um postulado ético de sobrevivência em um campo de extermínio que é a periferia brasileira até hoje.”
“Foi um fator determinante para a minha politização. De enxergar o mundo não só no que é, como se fosse algo natural. Essa visão de que o mundo é uma construção humana e que, portanto, pode ser mudado também por mãos humanas foi o rap que me deu. A música de uma forma geral, e o rap de uma forma muito particular.”
Morar nas proximidades do Complexo Penitenciário de Piraquara fez despertar em Freitas também, pela primeira vez, o interesse pela advocacia. “Para nós do bairro, jovens, negros e pobres, a referência era a prisão. Esse é ainda hoje o perfil dos presos – mais de 70% dos detentos são jovens, negros, moradores de periferia, com ensino fundamental incompleto. É uma identificação negativa que nos retira possibilidades e oportunidades”, explica. “Mas, por outro lado, havia figuras que se destacavam, que eram os advogados que iam lá”, relata. “O maior bem que temos é a vida – e os médicos cuidam dela –, e depois da vida, com certeza é a liberdade, que eu via representada na figura do advogado.”
Aos 16 anos, a família foi morar em Pinhais, no Jardim Cláudia, onde conseguia pagar um aluguel. “Era um bairro mais barato justamente por ser muito violento”, diz. Morou ainda no Campo Alto, em Colombo, até se mudar para o Cachoeira, em Curitiba, em 2001, cidade de onde não saiu mais. “Fui fincando raízes na Grande Curitiba, contornando a capital até chegar aqui.” Com a vida quase nômade e as dificuldades financeiras, largou a escola ainda no ensino fundamental para trabalhar. Em 2003, após concluir os estudos em um Centro de Educação Básica para Jovens e Adultos (Ceebja), decidiu tentar o vestibular da Universidade Federal do Paraná (UFPR) para o curso de ciências sociais. Foi aprovado.
Como as aulas eram pela manhã, não conseguiu conciliar a faculdade com o trabalho como repositor do Big Boa Vista, e acabou abandonando o curso em 2006. “Mas fiquei com um gostinho pelo conhecimento, pela compreensão da própria realidade. Entender que os problemas que afetam a periferia e a população negra não são causados por nós mesmos, mas por um sistema que nos explora, nos domina e nos discrimina foi libertador.”
Depois de sair do supermercado onde trabalhava, passou a personalizar camisetas para vender. “Como já tinha essa aspiração ao direito e como o curso era noturno, em 2007, decidi fazer o vestibular novamente”. Foi um ano bastante difícil para Freitas. Em abril, seu irmão mais velho, João, à época com 24 anos e com uma filha de 7, foi assassinado durante um assalto à empresa em que ele trabalhava, no bairro Tatuquara.
Estudou o ano todo para o processo seletivo da UFPR em meio ao luto. “Entrei pelo regime de cotas raciais, e isso é importante assinalar, porque é uma política muito importante que fez vários jovens negros de periferia, como eu, entrar na universidade. Transformei minha caminhada a partir daí.” No segundo semestre da faculdade, conseguiu um estágio na área e no início do segundo ano passou em uma prova para a Defensoria Pública do Paraná, onde estagiou por dois anos.
Trabalhou ainda no Ministério Público do Trabalho, antes de concluir a graduação, em 2012. No mesmo ano, passou no concurso da Defensoria Pública para atuar como assessor jurídico e presidiu a então recém-criada associação de servidores públicos do órgão. Pediu exoneração do cargo em 2015 para ser advogado popular. “As causas que me afetam até hoje são as mesmas que já me afetaram durante toda a vida: a falta de moradia, a moradia precária, sem posto de saúde por perto, sem linha de ônibus; a luta pelo desencarceramento, para que o direito penal coloque a vida em primeiro plano e o patrimônio, em segundo; e a luta racial.”
Ingressou no mestrado em direito, também na UFPR, em 2015, desta vez, ressalta, sem a necessidade de políticas afirmativas. “Uma vez estabelecida essa oportunidade de estudo, a gente corre atrás. Foi o que eu quis demonstrar”, explica. Em sua dissertação ‘Prisões e quebradas: o campo em evidência’, dedicada ao falecido irmão, partiu da teoria sociológica de Pierre Bourdieu para comparar espaços de extrema pobreza com o ambiente prisional, com o objetivo de “compreender os fenômenos da miséria, exclusão, encarceramento, violência e extermínio de determinada parcela da população.”
A partir do que aprendeu nas cadeiras universitárias, decidiu entrar para a política partidária. “Ainda nas ciências sociais, tive contato com teorias que partem do pressuposto de que a nossa sociedade não é da harmonia, mas do conflito, que está evidenciado por aí e do qual eu também sou fruto”, diz. “Ali me identifiquei com a teoria socialista, e fui atrás dos marxistas negros, os Black Panthers, e de figuras como Angela Davis, o que foi me municiando até eu entrar no PT, que já era um partido com o qual eu me identificava.”
Seguindo um grupo de dissidentes petistas, no entanto, deixou a legenda para entrar no PSOL, ainda apenas como militante. Em 2016, foi convidado a sair candidato a vereador pela sigla. “Disseram que eu faria de 400 a 600 votos, o que ajudaria a atingir o quociente eleitoral”, conta. “As pessoas sempre me diziam para sair candidato, mas eu não levava isso a sério até aquele momento”. Não foi eleito, mas fez 3.455 votos, tornando-se o candidato a vereador mais bem votado do partido no Paraná até hoje.
Por considerar que o PSOL de Curitiba está muito vinculado aos corredores da universidade, decidiu voltar ao PT para se candidatar a deputado estadual em 2018. “As universidades são ambientes de criação do saber, que tem sua função pública, mas não são ambientes de representação política popular”, analisa. Na campanha estadual, fez 15.663 votos. “Foi uma campanha sem muitos recursos, mas vitoriosa, realizadora. Identificamos pessoas com nossos projetos, nossos rostos, nossas trajetórias, o que fez com que a campanha de 2020 tivesse um movimento de inércia. Apenas crescemos, ficamos mais fortes.”
Eleito, quer levar ao Legislativo municipal as causas que defendeu durante a vida. Um de seus projetos visa a regularização de moradias e urbanização de seus entornos. “Hoje Curitiba não tem nenhuma iniciativa nesse sentido. A única política que existe é a remoção, mandar as pessoas para outro lugar, bem distante, sem dar valor às relações familiares, de vizinhança, a ligação que as pessoas têm com a localidade em que vivem.” Segundo ele, os recursos para regularização de áreas podem vir de uma tributação progressiva sobre terrenos sem função social, que já é prevista na Lei Orgânica do Município mas que nunca foi executada.
Outro projeto, que já desenvolve mas que pretende ampliar, é um trabalho cultural com crianças e jovens da periferia, em situação de vulnerabilidade social, por meio de artes como a música, a poesia, o cinema e a literatura. “A ideia é construir uma boa autoestima, uma boa representação de onde eles moram. Esse projeto vai ser ampliado em duas frentes: uma com recuperação de dependentes químicos e outra com o acompanhamento de egressos do sistema penal.”
Freitas planeja ainda propor a criação de uma praça exclusiva para pessoas com deficiência física, com quadras para basquete em cadeira de rodas, futebol de cinco (para cegos) e academia ao ar livre adaptada, por exemplo.
Durante as três campanhas eleitorais de que participou denunciou agressões por parte de agentes de segurança pública. Em 2018, levou dois tiros de bala de borracha disparados por um guarda municipal durante uma ação panfletagem ao lado da Praça do Gaúcho. “Sofri violência física, violência psicológica e ameaças, inclusive de morte”, conta. Já em 2020, logo após a eleição, foi alvo de ataques após ter sido flagrado pichando um toldo do supermercado Carrefour, em um protesto de repúdio à morte de João Alberto de Freitas em uma unidade da loja em Porto Alegre. “Teve policial que disse que a morte seria uma punição justa para mim pela pichação”.
“Estou acostumado a ser um estranho no ninho. Quando entrei na universidade, não encontrava meus pares, a linguagem falada ali não era a que eu usava, a estética adotada não era aquela que eu fruía no mundo das artes, as pessoas não tinham minha cor, não vinham do mesmo lugar. A gente que está tentando se encaixar nos espaços de poder tem que ter essa alteridade, de se colocar no lugar dessas pessoas para compreender o mundo delas, para conseguir entrar sem gerar muita resistência, porque geralmente quem tem menos força somos nós.”
“Acredito que a vida nos dá condições de ter uma inteligência comportamental e social maior do que a deles. Qualquer jovem de periferia tem um olhar aguçado para leitura das pessoas, do ambiente, porque isso pode representar um risco à vida. As pessoas não deveriam precisar passar por situações extremas para isso, mas, para o bem ou para o mal, esse é o tipo de habilidade que só a gente tem.”
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