"A miséria da segurança pública começa exatamente quando leis e políticas são feitas na base do achismo, na base de uma retórica ideologizada, vazia, sem levar em consideração as evidências científicas". A citação do economista Daniel Cerqueira que abre a dissertação de mestrado de Maurício Fogaça funciona como um bom resumo do que o levou à vida acadêmica. Acumulando especializações no currículo, o 2º Sargento da Polícia Militar do Paraná usou sua experiência nas ruas para se debruçar sobre as consequências dos investimentos na política criminal de drogas em sua dissertação de mestrado.
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"Durante mais de 20 anos de labuta nos bairros de Curitiba, me deparei cotidianamente com o caos social e percebi o quanto as drogas estavam de certa forma aumentando a criminalidade, tanto quanto ao uso e tráfico, como furtos, roubos e homicídios decorrentes. Diante deste fenômeno comecei a refletir acerca de quanto o Estado estava gastando, no aspecto econômico, com a política de encarceramento, o que serviu de base empírica e depois científica para o tema da dissertação", explica.
Em menos de duas décadas, o número de presos no Brasil cresceu 157,3%. Segundo dados do sistema de informações do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em 2000, existiam 137 pessoas presas para cada 100 mil habitantes. Em junho de 2016, eram 352,6 pessoas encarceradas para cada 100 mil habitantes. Contando apenas maiores de idade, segundo o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), a população prisional brasileira chegava 727 mil no primeiro semestre de 2016. "Nunca se prendeu tanto e isso desmistifica o senso comum de que 'a polícia prende, mas o juiz solta'", pondera o pesquisador.
O aprisionamento em massa também não se reflete em mais segurança: de acordo com o Atlas da Violência de 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), um número recorde de 62.517 pessoas foram assassinadas no Brasil em 2016.
Além disso, prender pessoas é caro. A pesquisa de Fogaça aponta que um detento brasileiro custa, em média, R$ 2.400 mensais (dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça). Esses custos estão vinculados a sistemas de segurança, contratação de pessoal, alimentação e vestuário, assistência médica, psicológica e jurídica, variando substancialmente de uma unidade para outra. No Paraná, de acordo com o CNJ, o custo médio mensal de um detento é de R$ 2,3 mil. Com uma população prisional de 51,7 mil pessoas, em 2016 o estado teria gastado R$ 119 milhões com o sistema penitenciário por mês.
Fogaça salienta que há um déficit de cerca de 33 mil vagas em aberto por falta de penitenciárias no estado. Tomando como base a Penitenciária de Piraquara, que comporta aproximadamente 720 presos, seriam necessários 462 novos prédios para suprir essa demanda. E isso tudo leva em consideração apenas detentos maiores de idade, sem contar os adolescentes infratores.
Além dos custos de manutenção dos presos, também entram na conta os gastos com as próprias ocorrências policiais. Fogaça calculou que, em média, cada ocorrência de policial que dure aproximadamente 3 horas (tempo médio das notificações relacionadas a drogas) custa R$ 185,75. Em 2017, o Paraná registrou 14,9 mil ocorrências relacionadas ao consumo de drogas e outras 10,4 mil relacionadas com o tráfico.
"Dessa maneira, em 2017 o Estado do Paraná gastou somente com a Polícia Militar em atendimento a ocorrências que envolveram drogas ilícitas, partindo do deslocamento da equipe policial ao fechamento da ocorrência, um montante aproximado que passou dos R$ 4 milhões", escreve o pesquisador.
Lei das Drogas e encarceramento em massa
O Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking de maiores populações carcerárias no mundo, atrás apenas de Estados Unidos (2,1 milhões de presos) e China (1,6 milhão de detentos). "Com base nos dados levantados, essa trágica posição só foi alcançada graças ao nosso desempenho na prisão de pessoas 'acusadas' por tráfico de drogas, oriundas do processo seletivo penal etiquetado e dos discursos de lei e ordem institucionalizados. Prender mais não reduz o crime, haja vista o grande número de reincidentes e o aumento da criminalidade, mesmo se prendendo bem mais do que nas décadas anteriores", afirma.
O boom prisional no país, de acordo com a pesquisa desenvolvida pelo sargento no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), está relacionado à lei nº 11.343/2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e criou um tratamento legal diferenciado para o usuário de drogas, em comparação ao pequeno traficante. Na prática, usar drogas ilícitas ainda é crime, mas a prisão não seria mais o destino de quem for apenas usuário. Essa tipificação cabe ao delegado de polícia.
O objetivo da mudança legislativa era reduzir o aprisionamento. Na prática, a implementação da nova legislação trouxe um aumento de 344,8% nas prisões relacionadas às drogas, segundo dados das Nações Unidas no Brasil. "A política de combate às drogas vem contribuindo para o encarceramento em massa na atual conjuntura brasileira, inclusive de forma seletiva, através do chamado pinçamento da lei - ou seja, a quem interessa que seja etiquetado como traficante", afirma Fogaça.
"O perfil padrão do detento brasileiro é o seguinte: ele tem menos de 30 anos, é homem, negro, morava na periferia e está na cadeia na grande maioria por causa de tráfico de drogas, roubo ou furto, sendo que 74% dos encarcerados são provenientes de famílias que sobrevivem com apenas um salário mínimo, 81% não têm instrução primária completa e 14% não sabem, sequer, escrever o próprio nome.”
Hoje, a estimativa é de 25% dos homens e 63% das mulheres estejam presos por infrações relacionadas a drogas. "Desde 2006, o encarceramento por conta das drogas aumentou em todas as capitais brasileiras", garante Cezar Bueno de Lima, professor de Ciências Sociais da PUC-PR e orientador do trabalho.
"A gente sabe que não são só os jovens pobres que traficam e consomem drogas. Mas quando observamos o perfil das pessoas que são interceptadas pela polícia e estão no sistema prisional você vai ver que são, em geral, pobres, negras e que habitam as periferias das grandes cidades. Se todas as pessoas são passíveis de praticar [esses crimes], por que só os pobres e negros vão inchar e superlotar as prisões? Existe uma seletividade na nossa sociedade, que passa pelo aparato de repressão e controle: é mais fácil prender seletivamente os pobres, negros e periféricos", ressalta.
Dependência química
Outro aspecto a ser levado em consideração é o das prisões associadas à dependência química. Entre 2008 e 2010, o delegado aposentado e professor Carlos Roberto Bacila, do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR), acompanhou o atendimento a ocorrências policiais em Curitiba durante a madrugada como parte de uma pesquisa de campo. Ele conta que em 90% dos casos acompanhados por ele eram de dependentes químicos que cometiam pequenos delitos (tentativa de furto e venda de pequenas quantidades de crack, por exemplo) para alimentar seu próprio vício. "Só que, na estatística, essa pessoa é presa como traficante de droga. A nação toda vai pensar 'mais um traficante sendo tirado de circulação'", observa.
A própria Lei de Drogas prevê, no artigo 45, providências específicas a serem tomadas em casos de dependentes químicos cometendo delitos. O encaminhamento médico, porém, aconteceria apenas no momento da sentença dada pelo juiz. Bacila considera isso insuficiente, já que muitas vezes essas pessoas acabam indo parar no sistema prisional comum - não apenas ficando sem o tratamento necessário, como também contribuindo para a superlotação nos presídios.
"Na prática, essa multidão de gente detida gera procedimentos criminais. Ou ela é presa e recolhida ao cárcere e segue no sistema penal comum (virando um soldado barato para o crime organizado). Ou, se o juiz entende que não há elementos suficientes para a prisão, ela volta para rua, onde acaba se tornando reincidente", diz. Para o professor da UFPR, uma solução possível é equipar delegacias com equipes de plantão compostas por diversos profissionais, de assistentes sociais a médicos, para que a dependência química possa ser atestada logo após a abordagem policial e a pessoa detida seja encaminhada para tratamento especializado.
Nadando contra a maré
Para Lima, delegar às prisões o problema do tráfico e do consumo de drogas é uma batalha perdida e infrutífera. "Por mais que a gente prenda essas pessoas, a gente nunca vai prender o suficiente", destaca. "Essa pesquisa é importante para mostrar para a sociedade que a gente precisa caminhar em outra direção. Os custos econômicos na abordagem de um delito e da prisão de uma pessoa são muito altos e não trazem os resultados que a sociedade almeja. Só a punição não basta. É preciso abrir novas perspectivas.”
Nesse sentido, Fogaça aposta na Justiça Restaurativa como um caminho para solucionar delitos sem apelar para a penalização. Essa metodologia busca pacificar relações sociais com base no diálogo, através de um processo multidisciplinar, numa espécie de "mediação" para solução de conflitos que colabora para o desafogamento do sistema jurídico. "A justiça restaurativa não pode ser aplicada a todo e qualquer tipo de crime, mas a uma grande parcela. Há outros métodos para se aplicar a justiça. Assim, podemos retirar um grande peso do sistema judiciário, que está abarrotado de processos, deixando para este os crimes mais graves e contribuindo para a celeridade e eficiência de todo o sistema jurídico-carcerário".
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