A falta crônica de profissionais da Polícia Científica do Paraná está na origem de uma fila de mais de 73,6 mil perícias pendentes. As áreas mais afetadas são balística, genética molecular forense, química legal e computação forense, o que suscita, pela natureza dos exames, atrasos no andamento de investigações ligadas a assassinatos e em identificações via DNA em casos de crimes sexuais, tráfico de drogas e crimes cibernéticos.
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As informações são públicas e estão disponíveis no site do próprio órgão. Segundo a plataforma, o total de exames periciais finalizados dentro do prazo estipulado em lei, que é de até 10 dias, corresponde a pouco mais da metade (56%) dos pedidos feitos no estado.
Para o presidente da Associação Brasileira de Criminalística (ABC), Marcos Secco, é preciso investir na área como um todo, já que de nada adianta adquirir novas tecnologias se houver deficiência de pessoal para executar atividades tão específicas e essenciais. “Este trabalho é como uma lupa”, exemplifica.
“Quanto maior a capacidade de ampliação desse instrumento, desse microscópio, por meio das ferramentas de que dispomos e que nos permitem inclusive otimizar os recursos em conformidade com os pilares da eficiência e da economicidade, mais conseguimos enxergar”, diz ele.
Para isso, contudo, é preciso também considerar a relevância do fator humano. “Por mais que em alguns estados as condições sejam melhores do que em outros, como no caso do Paraná, que tem se modernizado, isso só se aplica a laboratórios e a determinados exames”, pondera. “Já a perícia externa, que é aquela feita no local, exige uma quantidade mínima de profissionais e ponto”, acrescenta.
O cálculo é simples. Com menos servidores do que o necessário, a emissão de laudos por parte da Polícia Científica leva mais tempo do que deveria e quem integra o quadro de pessoal acaba sobrecarregado. Nessas condições, aumenta o risco de afastamentos por doença, o que reduz ainda mais o número de trabalhadores ativos e, consequentemente, a produtividade do órgão. E isso sem contar eventuais períodos de férias e licenças sem vencimentos. “É preciso ter ao menos quatro pessoas para fechar uma escala de plantão”, pontua Secco. “A proporção recomendada pela ABC é a de que haja um perito para cada 5 mil habitantes”.
De acordo com a legislação em vigor (Lei Complementar 258 de 14/07/2023), o Quadro Próprio dos Peritos Oficiais (QPPO) do Paraná conta com 1.478 postos. São 301 colocações de 20 horas semanais para peritos oficiais na função de médico legista; 726 cargos de 40 horas semanais para peritos oficiais odontolegistas, peritos criminais, químicos legais e/ou toxicologistas; e mais 451 vagas de 40 horas semanais para técnicos de perícia oficial nas funções de auxiliar de necropsia e de perícia.
Por outro lado, os dados disponíveis no Portal da Transparência do governo mostram que apenas 570 profissionais ocupam essas posições, o que equivale a 38,6% da oferta. São 134 peritos oficiais na função de médico legista (44,5% do total previsto e necessário); 301 peritos oficiais odontolegistas, peritos criminais, químicos legais e/ou toxicologistas (41,46%); e 135 técnicos de perícia oficial (29,9%).
A diferença da teoria em relação à prática é um buraco de 908 postos não preenchidos, o que significa que, para atender à própria legislação, o estado teria que elevar o volume de admitidos em quase 160%. O cenário é ainda pior se a base de comparação for a proporção indicada pela ABC. Uma vez que o estado tem 11.443.208 habitantes, conforme o Censo Demográfico 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), deveria dispor de quase 3 mil profissionais – um salto de 302% em relação ao quadro atual.
"Enxugar gelo" está atrelado à produção robusta de provas sobre os crimes
Secco ressalta que “um corpo técnico sem tecnologia é o mesmo que nada, e tecnologia sem um corpo técnico também”. Ele pontua que tanto as contratações quanto as aquisições de tecnologia são investimentos essenciais em segurança e na qualidade de vida da população, e não despesas. “Na persecução penal, discute-se muito o conceito de enxugar gelo porque a polícia prende e o judiciário solta, mas é preciso pensar nos motivos que levam o judiciário a soltar, como a questão da produção robusta de provas”.
O descompasso não passa despercebido e foi para tentar reduzir essa lacuna que o Executivo paranaense abriu dois concursos públicos para a pasta desde o ano passado. “A Polícia Científica é a força com menor capilaridade no estado”, reconhece Ciro Pimenta, diretor operacional do órgão. A questão é que, mesmo que as vagas desses procedimentos sejam somadas, o resultado é uma oferta de não mais que 46 colocações.
“Não é o ideal, mas o Paraná já esteve pior”, lembra Secco. “Hoje, apesar dos pesares, a situação é outra, tanto que Paraná, Santa Catarina e Mato Grosso são as unidades da federação com melhores condições de gestão, tecnologia e desenvolvimento”, evidencia ele. Rio de Janeiro, Acre e Roraima, ao contrário, seriam os estados com as piores realidades.
“É claro que há uma defasagem, mas também é verdade que investimentos vêm sendo feitos”, justifica Pimenta. “O governo tem colocado muitos recursos nos laboratórios; nós somos o primeiro estado do país, por exemplo, a aderir ao Banco Nacional de Perfis Balísticos, do Sistema Nacional de Análise Balística (Sinab)”. Para o diretor, quanto mais um serviço se especializa, maior torna-se a demanda por pessoal habilitado.
“Laudos periciais mais robustos do ponto de vista técnico nos permitem dar melhores respostas à sociedade, então foi por entender isso que o efetivo aumentou significativamente desde 2017 e agora conseguimos estar mais perto da população”.
Ciro Pimenta, diretor operacional da Polícia Científica do Paraná
Pimenta afirma que, na época, o percentual de ocupação do QPPO era de apenas 19%. Questionado, o órgão diz que neste fim de março começa a contar o prazo inicial de validade de dois anos do certame. Depois disso, o procedimento poderá ser prorrogado por mais dois anos e valer até 2028. “Esses concursos em andamento visam preencher cargos que já foram ocupados, mas que ficaram vagos por causa de aposentadorias, exonerações, demissões, falecimentos”, explica o diretor.
Também deve haver espera em relação ao concurso aberto em 2024, dadas as fases e exigências inerentes à contratação de servidores para a Polícia Científica do Paraná. A estimativa é de que a homologação ocorra nos primeiros meses de 2025. “Existe um planejamento estratégico para abrirmos concursos de ampliação do quadro de pessoal, ou seja, para postos que, apesar de constarem na lei, nunca foram ocupados e dependem de aprovação e de previsão orçamentária”, informa Pimenta. Embora a notícia seja positiva, ainda não há informações de quando esse projeto pode sair do papel e nem de quantas vagas podem ser abertas.
Futuros servidores da Polícia Científica ficam na expectativa
Angela Dantas é uma das aprovadas no concurso público realizado no ano passado, que teve mais de 7 mil inscritos. Ela preside a Comissão dos Aprovados da Polícia Científica do Paraná - 2023 e conversou com a reportagem da Gazeta do Povo. Angela conta que a espera pelo início das atividades tem sido longa e difícil. “Sabemos que existe uma inclinação à terceirização da mão de obra, como no caso dos militares inativos, que atuam voluntariamente pela metade do salário”. No caso desses aposentados, a seleção foi feita sob o argumento de que eles conduziriam somente tarefas administrativas. “Aí é que está: nós temos informações de que essas pessoas estão desenvolvendo atividades de natureza técnico-administrativa que são exclusivas para técnicos de perícia”, acusa ela.
Outro complicador é o clima organizacional que os atuais integrantes do QPPO enfrentam e que está no horizonte dos futuros servidores. Pesquisa realizada pelo Sindicato dos Peritos Oficiais e Auxiliares do Paraná (Sinpoapar) mostra que, no geral, os profissionais do quadro estão insatisfeitos com as condições de trabalho, tanto pelo efetivo reduzido quanto pela estrutura física das instalações. “É difícil porque investimos muito e isso mesmo antes de começar na carreira”, afirma Angela. “Cada candidato desembolsou cerca de R$ 2 mil para pagar os exames da etapa médica, então nós também fizemos uma aposta e só queremos que isso tenha valido a pena”, acrescenta.
Problema antigo com impacto internacional
Foi há 30 anos, em 1994, que o Brasil assistiu, atônito, à primeira de duas chacinas ocorridas na comunidade Nova Brasília, no Complexo do Alemão, durante operações policiais no Rio de Janeiro (RJ). A segunda foi registrada em 1995 e 13 jovens foram mortos em cada um dos episódios, para além de denúncias de tortura e três estupros. Os eventos levaram a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), instituição judicial autônoma da Organização dos Estados Americanos (OEA), a condenar o país por violações de direitos humanos e impunidade em casos de violência policial. A sentença data de maio de 2017.
Em suma, a CIDH concluiu que houve morosidade injustificada nas investigações e que as famílias das vítimas ficaram sem proteção, algo que viola o direito às garantias judiciais de diligências em prazos razoáveis e que está previsto na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. Ainda pelo entendimento da CIDH, houve uma espécie de inversão de papéis por parte do estado brasileiro quando os inquéritos, ao invés de apurarem as circunstâncias das mortes, voltaram os olhos aos perfis dos mortos e passaram a apontá-los como possíveis criminosos. De vítimas, aquelas pessoas foram transformadas em investigadas.
Consta, dentre os pontos da sentença, uma ordem para que o Brasil desenvolva uma política que estimule e garanta a autonomia e eficiência das investigações, o que inclui os órgãos de perícia, e que haja investimentos substanciais nessas atividades. Nos casos em que policiais apareçam como possíveis acusados, a determinação é para que a apuração seja delegada a um órgão independente e fora da força envolvida no incidente. “A decisão já tem quase 10 anos e diligências vêm sendo feitas pela Corte de tempos em tempos, apesar de nem sabermos direito ainda quais são as punições previstas em caso de descumprimento”, diz Marcos Secco. “Pode parecer pouco, mas são passos importantes para que essa realidade mude no futuro”.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem monitorado as medidas adotadas pelo poder público brasileiro no sentido de cumprir as determinações da Corte Interamericana. O órgão atua como fonte independente e autônoma de informação, e o trabalho é desenvolvido por meio da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (UMF). Adicionalmente, o assunto inspira discussões no meio político.
A discussão do assunto em Brasília
Um dos efeitos da condenação na CIDH foi a elaboração de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que busca incluir as polícias científicas no rol dos órgãos de segurança pública dos estados e do Distrito Federal, assim como ocorre com as polícias Civil e Militar e com o Corpo de Bombeiros. A autoria da PEC 76/2019, também chamada de PEC da Polícia Científica, é do senador Antonio Anastasia (PSDB-MG). No texto, a justificativa é a de que, a depender da unidade da federação, esses serviços são prestados por pastas total ou parcialmente desvinculadas das demais corporações. “É preciso que haja autonomia e independência e que esses órgãos sejam dos estados e não da instituição A, B ou C”, destaca Secco.
O texto tramita na Casa desde maio de 2019, mas está parado à espera de ser pautado para análise e discussão na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) do Senado há cerca de um ano. A relatoria é da senadora Professora Dorinha Seabra (União-TO).
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