Se você mora ou frequenta cidades litorâneas no Brasil, certamente já se deparou com cenas em que o mar invade a orla e causa estragos em calçadões e ruas. Isso acontece porque as áreas urbanas são frequentemente construídas sobre o que chamamos de faixa dinâmica das praias, uma área que muda constantemente com o vaivém das marés e que precisa de espaço, com areia e vegetação, para suportar essa movimentação. Se ela não existe, o mar ganha, provocando as ressacas. E quem perde são as cidades, criando um grande desafio para a engenharia costeira.
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Essa realidade não é restrita ao Brasil. E as razões para que isso aconteça também não se limitam à forma como as cidades são levantadas sobre regiões litorâneas. No caso do Brasil, o país chama a atenção pela extensa quilometragem de costa: são cerca de 8 mil quilômetros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), compreendendo 444 municípios (dado de 2021). Muitos deles, com áreas construídas sobre a praia, com altos edifícios e estruturas de lazer.
Mas há países que vivem desafios semelhantes, e por motivos diferentes. É o caso de Portugal, que tem problemas sérios de erosão costeira não tanto por conta das ocupações ao longo da orla, mas muito por causa das barragens construídas nos extensos rios, que alteraram a forma como os sedimentos são mandados para o mar e, consequentemente, criaram condições para que o mar invadisse a praia.
Se a origem nem sempre é a mesma, o resultado se assemelha. E a necessidade de criar alternativas para viabilizar que praias e cidades coexistam com menos turbulências é alvo de pesquisadores e profissionais de engenharia costeira do mundo todo. Este ramo da engenharia civil vem se desenvolvendo a passos largos, afinal, essa é uma urgência global em países com zonas costeiras tão habitadas e alteradas por conta das intervenções humanas no ambiente natural.
E a inovação, finalmente, chega também ao setor, com a criação de ferramentas que conseguem prover soluções menos reativas e mais bem planejadas para o longo prazo, conforme a realidade de cada local e o melhor custo-benefício (veja abaixo).
Técnicas de engenharia como colocação de espigões, que são estruturas construídas perpendicularmente à praia; muros de retenção, estes colocados em paralelo à costa, e quebra-mares são algumas alternativas existentes. Mas talvez a mais conhecida e utilizada seja, ainda que em boa parte dos casos não isoladamente, a alimentação artificial da praia, tradicionalmente chamada de engordamento ou alargamento.
“Essa acaba por ser a solução mais eficaz porque é a única que vai de encontro à causa do problema; se o problema é falta de areia, colocamos artificialmente”, explica a engenheira civil Marcia Lima, que é professora da Universidade Lusófona do Porto, investigadora da Universidade de Aveiro e consultora da empresa R5 Engenharia, de Portugal.
No caso do Brasil, especificamente, o ponto nevrálgico é a ocupação não planejada da orla, que deixou muitas praias com faixa de areia insuficiente. “O grande problema é que as zonas urbanas costumam ocupar a faixa dinâmica da praia. E a praia é a maior defesa que temos quanto à energia do mar, que é muito destrutiva”, resume o professor de engenharia costeira e oceanográfica do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Paulo Rosman.
Numa simples explicação, é possível perceber que ressacas são processos naturais. O fenômeno só se torna um desafio quando não tem uma área suficiente para dissipar a força das ondas. “Conforme se aproxima da praia, o processo de arrebentação da onda dissipa muita energia, mas não tudo. O restante é dissipado no transporte de areia. Logo, a praia está sempre sendo remodelada pela ação das ondas, e precisa ter esse estoque de areia para a dissipação da energia”, detalha.
A mesma lógica do que acontece em Portugal. Lá, o mar tem características diferentes do Brasil. Ondas gigantes são frequentes, assim como profundidades maiores. E a demanda pela areia é, consequentemente, maior. “Anos atrás, os rios tinham capacidade de fazer chegar ao mar a quantidade de sedimentos necessária. Temos ondas muito altas, e a capacidade de transporte delas é muito grande. Por isso, hoje, o mar busca areia de onde pode tirar (da praia) e isso provoca cada vez mais erosão”, explica a pesquisadora.
O alargamento como solução encontrada pelas cidades brasileiras
Há cerca de três anos, 20% dos 700 quilômetros de costa portuguesa eram acometidos pela erosão. No Brasil, essa porcentagem chegava a 60%. E por aqui, o aumento da largura da praia tem sido uma das intervenções a que mais se recorre para dar conta de casos muito avançados, em que o mar destrói parte das cidades.
Recentemente, cidades litorâneas como Matinhos, no Paraná, e Balneário Camboriú, em Santa Catarina, passaram por esse processo. As duas viviam problemas com ressacas há décadas. A próxima a passar pelo engordamento será Guaratuba, também no Paraná, ainda em fase de contratação do projeto.
Bem antes disso, porém, o Rio de Janeiro ficou conhecido por passar por um bem-sucedido processo de engordamento da praia de Copacabana, na década de 1960, o que ampliou a faixa de areia, permitindo o uso da área para turismo e lazer. Mas, à época, as técnicas não eram aprimoradas como hoje, e o uso de areia com granulometria maior (ou seja, mais grossa que a original) interferiu nas características naturais da praia. A durabilidade do projeto, no entanto, foi a contento – embora obras de manutenção sejam necessárias.
As capitais nordestinas vivem necessidades semelhantes. Recife (PE) e Natal (RN), por exemplo, têm projetos parrudos para um futuro alargamento. Já Fortaleza (CE) fez alargamento duas vezes em menos de 20 anos na Praia de Iracema e sofre com processos erosivos recorrentes.
Definir qual a solução mais acertada para resolver os entraves entre praias e cidades, no entanto, envolve variáveis muito complexas. É preciso avaliar características de ondas, profundidade do mar, formato da praia, ocupação e uma série de características que podem mudar completamente o planejamento de uma obra de engenharia costeira. Mas a tecnologia está mudando a projeção desse cenário.
O software de engenharia costeira que indica a melhor solução para as praias
Quando Marcia Lima iniciou o doutorado na Universidade de Aveiro, cidade litorânea a menos de 100 km do Porto, em Portugal, ela só tinha um objetivo: criar algo que melhorasse o planejamento de obras costeiras e criasse soluções efetivas para os mais diferentes casos.
Ela passou os anos do programa desenvolvendo, então, um software que coloca a engenharia costeira no foco da inovação e levanta novas possibilidades na otimização dos recursos para convivência entre praias e cidades: o Coast, ou Coastal Optimization Assessment Tool (em tradução livre, Ferramenta de Otimização de Análise Costeira). Uma ferramenta capaz de dimensionar soluções para problemas de erosão marítima levando em consideração as diversas possibilidades técnicas da engenharia, atreladas às características de cada ambiente - e resultando, assim, no melhor custo-benefício de obra.
“Víamos problemas cada vez maiores de erosão costeira e as intervenções era sempre feitas em emergências. Aconteciam sempre depois de um galgamento (ou ressacas, como usualmente falamos no Brasil) ou uma tempestade. O que fizemos, então, foi antecipar o problema: o que podemos fazer? Como otimizar as funções? Como devem ser feitas e planejadas?”, conta, elencando as perguntas que surgiam quando se precisava encontrar a melhor solução de obra.
Sem planejamento, as soluções podem nem sempre ser as melhores ou mais duradouras – e provavelmente não serão as mais baratas. “Há várias funções (ou intervenções) possíveis e o objetivo do Coast é dar respostas. Por exemplo, ao fazer um espigão, que tamanho e comprimento deve ter? Alimentação artificial? Quanto colocar de areia e em que zonas da praia?”, exemplifica.
O software leva em conta três componentes-chave para alcançar sucesso na execução, menor custo e maior durabilidade da solução encontrada, de forma rápida. “A primeira é análise da evolução da linha de costa. Considerando uma intervenção, avalio, num horizonte de 20 ou 30 anos, como a linha de costa vai evoluir e temos um modelo que projeta como isso acontecerá. Depois, dimensionamos a solução. Se é espigão, por exemplo, avalio o peso da pedra, o volume e o custo. E depois, fazemos a análise custo-benefício, em um comparativo entre as soluções”, explica.
A primeira aplicação real da ferramenta foi no projeto-piloto Coast4Us, viabilizado pela empresa portuguesa R5 Engenharia, que criou uma spin off ligada a projetos de áreas marítimas, em parceria com a Universidade de Aveiro. “Fizemos um financiamento europeu e o objetivo é aplicar a (ferramenta) Coast nas três zonas de maior risco em Portugal”, diz.
O primeiro passo é avaliar quanto se perderá do território por conta da erosão, se nada for feito em 20 anos, e o valor disso. E a partir daí, a análise se baseia em traçar vários cenários possíveis, que vão desde a combinação das técnicas de engenharia adequadas até retirada de obras que não fazem mais sentido. “A partir disso, vamos propor vários cenários, em conformidade com a agência portuguesa de meio ambiente. Nos reunimos com as câmaras, as freguesias (espécie de subprefeituras), fomos aos locais perceber o que está acontecendo e, a esta altura, estamos analisando as possibilidades. Temos cerca de 10 a 15 cenários possíveis para cada uma das zonas e vamos estudar qual o melhor custo-benefício para cada um, com base nos impactos avaliados”, afirma Marcia.
Além da aplicação piloto em Portugal, o programa alça voos e vai ser utilizado na Holanda. “O caminho é aplicar a ferramenta a zonas críticas de erosão para não agirmos de forma reativa e estarmos à frente dos problemas”.
E por aqui?
“Queremos chegar ao Brasil”, diz a pesquisadora. A intenção é, no futuro, firmar parcerias com órgãos públicos brasileiros e de outros países para repercutir o uso da ferramenta em várias realidades. O objetivo, segundo a engenheira, não é escalar o produto, mas aplicá-lo em vertente de consultoria. “São modelos demasiadamente complexos. Analisar a evolução de linha de costa implica conhecer em detalhes batimetria, cotas do fundo do mar, profundidade, calibrar o modelo, prepará-lo para determinada zona. E os resultados dependem disso”, justifica.
Enquanto isso, o que se sabe é que obras de revitalização de orla são demandas frequentes, e precisamos dar conta delas no curto prazo. Isso tende a ser mais evidente quanto menos se tem uma política de ocupação das áreas.
Historicamente, os planos de gerenciamento das cidades nunca se debruçaram muito sobre a questão. Mas, quando isso acontece, os benefícios a longo prazo são evidentes. Um exemplo é a Praia do Forte, em Cabo Frio, no Rio de Janeiro. “Olhando de cima, vê-se que fizeram a ocupação da parte norte da praia sem um plano de gerenciamento costeiro. O que foi diferente na parte sul, quando já se contemplava uma legislação nacional e estadual e passaram a cidade por trás da duna”, explica o professor da UFRJ Paulo Rosman. Nesta área, quando as ressacas vêm, logo a praia se refaz. E a infraestrutura da cidade não é atingida. Já na outra, obras civis são constantes para conter os estragos.
Há bons exemplos aos montes como este no Brasil, seja por preservação da área dinâmica da praia, seja por mudanças nos planos diretores que contemplaram o restabelecimento dessas áreas, com a volta das restingas, vegetação que se acumula ao final da areia da praia e que ajuda a proteger o litoral em situações de mar adverso.
Mas, especialmente nas cidades que ocuparam com altos edifícios suas áreas de praia, o cenário é outro. Isso porque, além de muitos deles terem sido instalados onde antes havia dunas ou restingas, prédios altos também afetam a circulação dos ventos, concentrando-os em áreas específicas da praia e aumentando sua intensidade, o que pode contribuir para a erosão.
Como mover estruturas como essas não é factível, colocar areia na praia é, portanto, a solução mais acertada. Mas não se pode esquecer que mesmo essas grandes obras de engenharia costeira têm seu tempo de acomodação, seus custos, que costumam ser de centenas de milhões de reais, e necessidades de manutenção, para que praias e cidades não criem novos entraves.
“Em todo processo de engordamento é preciso acompanhar a evolução, fazendo levantamento do perfil de praia periodicamente para entender a dinâmica da praia ao longo do tempo com sua nova configuração”, diz Rosman. “Os projetos em geral nos dizem que podemos passar décadas sem precisar refazer o processo, mas é o estudo de cada caso com o tempo que confirma”.
E nesses casos, não adianta ter pressa. Meses depois do engordamento em Camboriú, um grande degrau se formou na areia. Ela se acomodou e, um tempo depois, aconteceu de novo. Em Matinhos, a mesma coisa. E isso é esperável. “A praia vai encontrar uma estabilidade dinâmica ao longo do tempo, e isso significa que ela vai mudar ciclicamente, mas sem uma tendência evolutiva de erosão ou do que foi projetado”, explica o professor. Isso significa, portanto, que sinais de acomodação aparecerão até mesmo ao longo de anos.
Em Balneário Camboriú, o estudo contratado para acompanhar a evolução da obra e o perfil da orla mostrou que a praia está estável, apesar de a parte sul apresentar indícios de erosão, segundo a prefeitura, que reitera existir estudos para uma obra de estabilização.
Uma característica das obras atuais é a preocupação em usar areia com granulometria semelhante à original da praia para a deposição artificial – o que não foi feito em Copacabana, que garantiu maior extensão de praia seca, mas mudou a declividade da rampa que fica debaixo da água. “Hoje procura-se fazer com areia tanto quanto possível similar à do local, para manter as características naturais da praia”, lembra o pesquisador da Coppe-UFRJ.
Em Matinhos, engorda da praia após décadas de espera
Entre o projeto original e a obra propriamente dita, em Matinhos, foram 22 anos, que trouxeram com eles ressacas mais acentuadas. “Por isso repensamos o projeto e vimos que seria necessário não apenas o engordamento, mas também obras de macro e de microdrenagem”, recorda José Luiz Scroccaro, diretor de Saneamento Ambiental e Recursos Hídricos do Instituto Água e Terra (IAT), vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Paraná.
Com as obras adicionais, ele afirma que a durabilidade da obra deve se estender. “Se fizéssemos só o engordamento, sem as estruturas, a perda de areia seria em tempo mais curto”. O projeto para Guaratuba também vai levar em conta as características da praia e o fluxo da baía, podendo-se definir, assim, as estruturas necessárias e como será feito o engordamento.
Os estudos e acompanhamentos da dinâmica da praia de Matinhos em sua nova configuração seguem pelos próximos anos. “Temos estudos de perfil de praia por mais cinco anos para ver como se comporta, além de estudos da fauna”, antecipa.
Na cidade paranaense, a faixa de areia foi alargada em até 100 metros em uma extensão de pouco mais de 6 quilômetros. Além da engorda, o projeto inclui obras de macro e microdrenagem para minimizar os impactos causados pelos efeitos de ressacas. Na orla da praia estão sendo construídos guias-correntes, headlands e um espigão, que ajudam a dar mais estabilidade à área, além de plantio de vegetação nativa e paisagismo. O custo total da obra é de quase R$ 315 milhões.
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