Cometas. Assim eram apelidados os caixeiros viajantes no começo do século XX. Mais do que produtos, suas arcas e baús traziam aos rincões mais afastados do país todo um mundo de novidades. Como os corpos celestes de quem emprestavam o nome, iam e vinham em seu percurso, sempre aguardados com muita ansiedade. Era assim o dia a dia do Sr. Mário Caron, um cometa curitibano nascido em março de 1889 que carregou ao longo da vida, com muito orgulho, o reconhecimento de ser o primeiro assinante desta Gazeta do Povo em seu lançamento, em fevereiro de 1919.
Ao assinar a Gazeta do Povo, Mário Caron não só foi pioneiro e visionário em apoiar o jornalismo independente: seu gesto influenciou gerações de descendentes que, até hoje, lembram-se com carinho do valor que o patriarca dava à educação, à cultura e à liberdade de expressão, apesar de, ele mesmo, ter pouca educação formal.
Mário era filho de Manoel Caron, chefe da estação de trem da então cidade de Coritiba, e de Luísa Toscani Caron, uma imigrante italiana que chegou ao Brasil aos 8 anos de idade. A família era grande, 15 irmãos. Prosseguir nos estudos para além do fundamental não era a realidade para todos os brasileiros naquela época, mesmo que a recém promulgada República já visse na educação um dos valores fundamentais para o indivíduo. Mesmo assim, sem uma longa carreira por trás dos bancos escolares, o Sr. Mário Caron desenvolveu rígidos princípios morais e éticos.
Casou-se aos 28 anos com Odaléa Macedo Caron, filha do comendador José Ribeiro de Macedo – um dos líderes da produção da erva-mate no Paraná e cofundador da atual Universidade Federal do Paraná –, com quem teve sete filhos e 15 netos. É lembrado até hoje pela família como um homem trabalhador, correto e de idoneidade inabalável. Mário era um autodidata que do alto de seus 30 anos encontrou no recém-lançado periódico uma forma de unir sua paixão pela leitura com o desejo de estar sempre bem informado.
“Apesar de ser uma época em que tudo era muito precário, vovô teve uma visão de futuro muito importante. Ele valorizava demais a cultura e a informação, tanto que foi o primeiro assinante da Gazeta do Povo. E toda essa busca pela informação correta e apurada teve uma influência muito grande em toda a família”, lembrou a advogada Jacinta Caron, neta de Mário.
Assinante fiel do jornal, Mário Caron manteve a periodicidade de sua leitura até mesmo quando, por motivos de saúde, resolveu se mudar para São José do Rio Preto, no interior do estado de São Paulo. O rigor dos invernos na capital paranaense deixou marcas na saúde de Mário e Odaléa, que com problemas de circulação nas pernas decidiram morar em terras paulistas onde poderiam contar mais de perto com a ajuda vinda dos filhos médicos que por lá moravam. Ainda assim, longe da terra natal, Mário não deixava de se inteirar dos assuntos trazidos pelo jornal.
“Para eles foi de certa forma traumática essa mudança, eram curitibanos da gema, a vida inteira morando lá. E essa saudade era aplacada pelos tios que mandavam toda semana um pacote pelos Correios, com as edições da Gazeta do Povo. Não tinha problema se as edições já estavam atrasadas, eram outros tempos. Não havia essa urgência online que temos hoje. Ele lia tudo, acompanhava tudo. Para o meu avô era muito importante acompanhar essas notícias”, contou Cláudia Caron Nazareth, também neta de Mário e advogada em São José do Rio Preto.
Vida de cometa
Para sustentar a família, Mário Caron abraçou o trabalho de caixeiro viajante. Era representante comercial da Fiação, Tecelagem e Estamparia Ypiranga, da Família Jafet – pioneiros da indústria têxtil no Brasil – e, bom cometa que era, conhecia e era conhecido por fregueses em uma área que se estendia até o estado do Rio Grande do Sul e sua capital, Porto Alegre. Era uma rotina que o mantinha afastado da família por três meses a cada viagem de navio, e mesmo assim ele a cumpria com honra e retidão.
O período mais difícil foi no começo da década de 1940. A Segunda Guerra Mundial, algo ainda longe do imaginário coletivo no período em que o Sr. Mário se tornou assinante da Gazeta do Povo, havia sido deflagrada pouco antes. Havia submarinos alemães navegando pelo Atlântico Sul, e quando estes receberam de Berlim a liberação para atacarem qualquer outra embarcação que lhes cruzasse o caminho, a frota da Companhia Nacional de Navegação Costeira – conhecida como os “Itas” – foi o alvo escolhido.
Aos 94 anos, Rachel Macedo Caron Nazareth, filha de Mário Caron, lembra ainda hoje das angústias da família a cada viagem do pai. “Ele ia de Paranaguá até Porto Alegre no Ita. Parava nos portos de Florianópolis, Laguna, Rio Grande e chegava em Porto Alegre. Ia e voltava nesse trajeto. Me lembro que por volta de 1940, eu estava no ginásio naquela época, os navios brasileiros estavam sendo torpedeados pela esquadra alemã no nosso litoral. Agora, imagine o nosso sofrimento durante os anos de guerra. Minha mãe tinha duas características: serenidade e firmeza. A comunicação naquele tempo era muito precária, e por isso papai corria para nos telegrafar assim que aportava. ‘Cheguei bem’, era a mensagem que ele mandava pelo telégrafo. Mamãe vinha com o telegrama e nos contava a boa notícia: ‘seu pai chegou bem’. Era um alívio para todos nós, que sabíamos desses ataques aos navios. Outras pessoas falavam ‘ah, mas a guerra é lá do outro lado do mundo’. Mas para nós a guerra poderia nos atingir dentro de nossa casa”, contou.
Mesmo deixando a família em casa apreensiva a cada partida, Mário Caron não viajava sozinho. Levava consigo uma cruz de estanho, lembrança da proteção divina. Essa cruz hoje está sob a guarda de Cláudia, neta dele e filha de Rachel. “Ele viajava com essa cruz de estanho dentro de uma das arcas de produtos que carregava, acreditava muito nessa proteção de Deus. E com a passagem dele, essa cruz coube a mim. É algo muito especial, porque eu também tenho nela uma forma de proteção. Eu recentemente passei por um problema grave de saúde, e tudo isso me confortou muito porque me senti próxima do meu avô”, disse.
O trabalho duro foi recompensado, como lembra a filha Rachel. “Quando se aposentou, recebeu cartas de diversos fregueses elogiando a atuação dele como vendedor. Não restava dúvidas: ele era o melhor cometa que esses fregueses conheciam. O valor dele foi reconhecido. Foi um lutador. Um guerreiro. Não tinha trem, não tinha estradas, não tinha nada. Ele viajava com tropeiros de mulas, e por não ter agências de banco pelo caminho ele levava todo o dinheiro consigo. Eram três meses viajando e um mês dentro de casa. Eu sempre admirei essa tenacidade dele como trabalhador”.
Homem de família
Por ter passado por duas guerras mundiais, lembra o neto José Manuel de Macedo Caron Júnior, Sr. Mário guardava muitos pertences e outras coisas no grande porão do casarão onde morava, na Rua Mateus Leme, perto do Largo da Ordem. “Aquele era o espaço do tesouro, fechado com aquelas chaves de ferro grandes. Eventualmente ele permitia que a gente entrasse com ele nesta sala do porão e ele contava os detalhes do seu tempo de cometa”, lembrou.
Liana Caron Nazareth Peçanha também lembra com carinho dos “tesouros” do avô, levados de Curitiba para o interior paulista. “A casa em Rio Preto foi escolhida a dedo, pois o porão era parte de sua vida. Num espaço menor [do que o porão da casa de Curitiba], perdi o medo, e ele me mostrava seus tesouros: fios, recortes, caixas, jornais ou latinhas permitiram que eu vivenciasse parte de sua história. Foi dali que pegou uma bebida envelhecida para comemorar com meu marido o crescimento de nossa família. Foi dali também que retirou e nos deu vários selos, alguns tão antigos que eu desconhecia as datas comemorativas”.
Janice Caron Nazareth, médica e neta de Mário Caron, conta que “aguardava ansiosamente as férias de fim de ano para visitar a família e cair nos braços de um homem de aparência austera, formal, sempre de terno, avesso e bufante às injustiças e desobediências, mas pleno de solidariedade com amigos e familiares, de uma bondade cheia de mimos”. Mas quem o conhecia de perto sabia que, apesar da austeridade, o senhor Mário também se permitia algumas brincadeiras. Assim foi quando o casal comemorou 60 anos de união em 1977.
“Quando foi descer as escadarias da igreja onde foi celebrada a missa em comemoração às Bodas de Diamante,” lembrou a neta Jacinta, “meu irmão imediatamente estendeu-lhe o braço para que se apoiasse na descida. Ele, de pronto respondeu: ‘Imagina se eu preciso de apoio’. Deu uma de Fred Astaire e começou a subir e descer os degraus, sapateando. Minha vó apertava as mãos preocupada, dizendo: ‘meu Deus, viemos para uma festa, vamos acabar saindo para um enterro’. E ele, pleno, sapateando, subindo e descendo os degraus com a vitalidade de um menino, do alto de seus 88 anos de idade”.
Mário Caron viveu até o fim da vida ao lado da esposa, Odaléa, cercado pela família. Em sua cadeira de balanço embalou cada um dos netos ao som de cantigas que até hoje são entoadas aos bisnetos e tataranetos. O amor que sentia pela companheira, lembram as netas, foi um dos grandes legados deixados por ele aos seus descendentes.
“Eu presenciei a paixão de meu avô pela minha avó. Ele tinha um respeito, uma veneração por ela. Os dois se amaram muito. Via isso ainda criança. Ele era muito emotivo, se debulhava em lágrimas por qualquer coisa. Quando vinha nos visitar aqui em Rio Preto, na despedida era ele quem mais chorava. E no caminho inverso também, quando íamos para Curitiba a nossa volta era sob lágrimas. E nós amávamos muito o vô Mário. Todos os netos, todos, ele ninou na cadeira de balanço, cantando sempre a mesma música”, frisou Cláudia.
“Ele era embevecido pela esposa. Acho que esse amor dos dois se estendeu, transcendeu para os filhos. E esse amor entre os irmãos também se estendeu para os netos, assim como os bisnetos. As minhas filhas e as primas e primos delas, que moram no estado de São Paulo, todas são muito ligadas. Toda a família é assim, as reuniões, os encontros que agora celebram os tataranetos, tudo isso continua com muito amor. Esse amor que ele tinha tão grande pela minha avó agora continua se espalhando pela quinta geração da família. Essa é a nossa maior herança, o amor”, disse Jacinta.
O amor de pai esteve presente até o fim da vida, quando em 1986 um dos filhos, Mário Macedo Caron Filho, não resistiu a um câncer. Mário, o pai, permaneceu ao lado do filho durante toda a luta. Cinco meses após a perda, em setembro do mesmo ano, o Sr. Mário Caron partiu ao encontro do “Supremo Arquiteto do Universo”, aos 97 anos.
Aos 92 anos, José Manoel de Macedo Caron, outro dos três filhos ainda vivos do Sr. Mário, resumiu de forma sincera a importância do pai na vida da família. “Mesmo sem ter tido muito estudo, buscou sempre educar os filhos nos melhores colégios que havia. Trabalhou muito, era um verdadeiro guerreiro”.
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