Além do impasse com registros de violência envolvendo indígenas e agricultores próximo à região de fronteira, o estado do Paraná tem outra área com registro de conflitos: produtores rurais da região de Sengés e Doutor Ulysses, na divisa da Região Metropolitana de Curitiba com o estado de São Paulo, estão tendo suas áreas ocupadas por grupos de quilombolas que requisitam a propriedade da terra.
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A região conta com extensas áreas de madeira reflorestada com pinus para atender a indústria de papéis e embalagens. Em pelo menos uma propriedade rural da região, os quilombolas estariam impedindo os agricultores de retirarem da área a produção de madeira e resina oriundas dos plantios de reflorestamento.
É o que relata um boletim de ocorrência ao qual a Gazeta do Povo teve acesso. Segundo o documento, trabalhadores desta propriedade teriam sido comunicados por membros do grupo de quilombolas de que tudo o que há no local pertence a eles. Esses quilombolas, aponta o boletim de ocorrência, andariam armados e teriam uma postura hostil e intimidadora contra os trabalhadores.
“Os trabalhadores foram informados [por um quilombola] que tudo o que há [na propriedade rural] é de propriedade do ‘movimento’. Por isso, serão impedidos de retirar [a produção]. [O quilombola] chegou ao ponto de mandar um recado [à proprietária rural] no sentido de que ela está trabalhando para eles, e que tudo, árvores, a terra e a resina são dos quilombolas”, diz trecho do boletim de ocorrências registrado junto à Polícia Militar local.
Quilombolas "expulsaram" PM de área invadida, Sesp nega e fala em "diálogo"
Em mensagens de áudio trocadas com a proprietária, os prepostos da fazenda alertam que os quilombolas teriam montado “guaritas” nos acessos à propriedade, para assim impedir a saída dos produtos. Em um dos áudios, o trabalhador informa a proprietária que uma viatura da PM chegou até uma dessas guaritas no início do mês, mas teria sido “expulsa” pelos quilombolas.
A Gazeta do Povo entrou em contato com a Polícia Militar do Paraná para confirmar se houve alguma ação da PM no local. Em nota, a Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) do Paraná confirma que recebeu a informação de que porteiras foram isntaladas em uma via pública em Doutor Ulysses. No local, informa a nota, moradores da comunidade quilombola só estavam permitindo a passagem de veículos após identificação e revista.
Na nota da Sesp, a PM nega que houve qualquer expulsão de policiais e afirma que "com muito diálogo, a comunidade aceitou manter a porteira aberta". Por fim, a nota aponta que foi feito um contato com a União e a Polícia Federal, responsáveis pelas comunidades quilombolas, e disse se manter à disposiçào das autoridades federais.
“Eles dizem que não aceitam a presença da PM ali porque, por serem quilombolas, a única força policial que eles ‘respeitam’ seria a Polícia Federal, ou a Força Nacional”, disse a proprietária rural, que pediu para não ser identificada por medo de represálias por parte dos quilombolas. À reportagem, ela contou que a área foi invadida ainda em 2008, mas que os ânimos ficaram mais acirrados a partir de 2023.
Comunidade do Varzeão foi reconhecida em 2023
Naquele ano, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) reconheceu, nos municípios de Sengés e Doutor Ulysses, uma área de 7,2 mil hectares como sendo a Comunidade Quilombola Varzeão. A portaria foi publicada no dia 20 de novembro, data em que se comemora o Dia da Consciência Negra.
“Existe uma série de etapas que precisam ser cumpridas antes da titulação dos quilombolas. Em 2023, o Incra reconheceu a área como uma comunidade quilombola, mas isso ainda não quer dizer que eles sejam os donos da área. Esses quilombolas simplesmente estão se apropriando do que não é deles, e ninguém está fazendo nada em relação a isso”, reclamou a proprietária.
Como o Incra determina que uma área é dos quilombolas
A reclamação da agricultora encontra respaldo na descrição do processo de titulação publicado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), órgão ao qual o Incra é subordinado. Após a portaria de reconhecimento há ainda duas etapas a serem cumpridas até que os quilombolas possam se intitular donos das áreas.
O processo todo começa com a autodefinição. Segundo o Incra, “as comunidades quilombolas são grupos étnicos – predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana –, que se autodefinem a partir das relações específicas com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias”.
Cabe à Fundação Palmares emitir a Certidão de Autorreconhecimento, primeiro passo no caminho da delimitação da área quilombola. A próxima etapa é a elaboração de um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), no qual os autodeclarados quilombolas precisam apresentar “informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, socioeconômicas, históricas, etnográficas e antropológicas” sobre a comunidade.
Publicado o RTID, abre-se um prazo de 90 dias para que os possíveis interessados se manifestem contrariamente ao processo de delimitação da comunidade quilombola. Este recurso é apresentado à Superintendência Regional do Incra, e precisa conter “evidências relevantes” contra a delimitação.
Cumprida esta fase vem a publicação do reconhecimento, um “ato formal que reconhece oficialmente os limites do território quilombola, assegurando a visibilidade e a proteção das terras da comunidade”. A partir do reconhecimento, a próxima etapa é a desapropriação dos imóveis privados que estiverem localizados dentro da comunidade.
Segundo o Incra, “os imóveis desapropriados passarão por uma vistoria e avaliação de preços, com o pagamento prévio em dinheiro pela terra nua, respeitando os direitos dos proprietários”. Só então ocorre a titulação, por meio de um documento coletivo emitido em nome da associação dos quilombolas. Uma vez obtida essa titulação, a comunidade fica proibida de vender ou penhorar a área.
Proprietária que perdeu área para comunidade quilombola tem reintegração de posse
A proprietária rural revelou à Gazeta do Povo que tem em seu favor uma decisão judicial de reintegração de posse da área, com transitado em julgado no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2019. Ainda assim, disse, ela não consegue reaver a propriedade. Por isso, entrou na Justiça para suspender a cobrança do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR).
“São mais de 30 casas construídas na minha propriedade, e quando eu vou lá sou ameaçada. Eu tenho a matrícula da terra e a reintegração de posse, mas acho impossível que essa decisão seja cumprida. E para a Receita Federal, eu sou devedora do ITR”, disse. Ela cobra do Incra a indenização pela área, próxima etapa legal dentro do processo de delimitação da comunidade quilombola.
“Eles estão se apossando de tudo. Desde 2008 começaram a construir casas bem nos locais onde a madeira era retirada. Agora, com base nessa portaria do Incra, cercaram a área dizendo que tudo é deles, se achando os donos. Foram milhões de reais investidos para agora eles dizerem que eu estou plantando para os quilombolas. O direito à propriedade é constitucional, mas pelo jeito isso não vale mais nada”, desabafou.
A reportagem entrou em contato com o Incra questionando a atuação do órgão nos conflitos entre os quilombolas na Comunidade do Varzeão e os proprietários rurais. Até a publicação desta reportagem não houve retorno. O espaço segue aberto para posicionamento do órgão.