Há um ano, o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem, viabilizado pela Lei 14.301/22, conhecida como Lei da BR do Mar, passava a vigorar em seu texto final. Desde que foi promulgada, a principal expectativa sobre a nova legislação era fomentar o transporte de cargas entre portos brasileiros e, assim, agregar uma alternativa ao modal rodoviário, especialmente em grandes distâncias. Além de diminuir custos logísticos. No entanto, desde que passou a valer, especialistas do setor avaliam que a lei ainda não tem efeitos práticos, já que falta a regulamentação para que suas prerrogativas funcionem e os estímulos criados garantam segurança jurídica aos investidores.
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A lei 14.301 teve origem no projeto 4.199, de 2020, de autoria do próprio Executivo. Uma demanda de anos dos setores produtivo e logístico. Originalmente sancionada em janeiro de 2022, a lei sofreu vetos do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). E, de volta ao Congresso, teve a maior parte dos vetos derrubados por deputados e senadores, passando a vigorar em 25 de março de 2022, com a publicação de seu texto integral no Diário Oficial da União (DOU).
Entre idas e vindas, a lei que era dada como aposta de ser um dos projetos estratégicos mais importantes já criados para impactar a matriz de transporte brasileira não vingou. A expectativa de seus efeitos criarem um forte estímulo à cabotagem, embora com ressalvas do setor a determinados tópicos, ficou frustrada nas entranhas da burocracia.
“Dependemos ainda de uma regulamentação, um decreto que ficou sendo gestado o ano todo (de 2022) e não foi editado”, explica o diretor-executivo da Associação Brasileira de Armadores de Cabotagem (Abac), Luis Fernando Resano. Agora, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sinaliza que deve rever o viés do decreto. Pelo menos é o que indicou o ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França, em evento realizado pelo setor de cabotagem na última semana, no Rio de Janeiro, ao reafirmar a necessidade de aperfeiçoar a lei aprovada na gestão anterior. “O programa BR do Mar, portanto, não funciona”, enfatiza Resano.
Em suma, a Lei da BR do Mar veio para atuar em quatro frentes: frota, indústria naval, custos e portos. Em relação à frota, passou a permitir o afretamento de navios de bandeiras estrangeiras, o que permitiria ampliar a capacidade de transporte por cabotagem, já que a frota eminentemente brasileira é reduzida. Ao mesmo tempo, visava ao posterior fomento da indústria naval brasileira, uma vez que, com uma esperada crescente demanda, mais ativos precisariam ser agregados, além de os navios operantes precisarem de manutenção e reparos.
Quanto aos custos, a promessa da lei era reduzir a burocracia e garantir melhores condições de competitividade nas operações de cabotagem. E no que tange aos portos, trazia a permissão de contratos temporários para movimentar cargas que ainda não constassem em operação, o que permitiria a abertura de terminais especialmente dedicados à modalidade.
Mas nada disso deve ser concretizado até que a regulamentação saia. “O decreto ficou pronto entre agosto e setembro do ano passado e não foi publicado. É uma grande frustração para o setor, porque não há expectativa real em termos de edição dessa regulamentação”, avalia Ademar Dutra, professor da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e coordenador do Congresso Internacional de Desempenho Portuário (Cidesport), que acontece anualmente no Brasil, reunindo pesquisadores e gestores da área.
O texto do decreto que vai regulamentar a BR do Mar deve estabelecer as regras, critérios e procedimentos a que entes públicos e privados terão de se submeter para a implementação, habilitação, execução e monitoramento do programa. A regulamentação traça em detalhes as regras para que empresas de navegação se inscrevam e operem dentro da política de incentivo, o papel de órgãos executivos e fiscalizadores, como a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), e condições e especificações para os afretamentos de embarcações. “O regulamento não traz algo novo ou diferente, mas detalha e especifica como vai ocorrer a operacionalização e a aplicação da lei”, explica Dutra.
Segundo o diretor-executivo da Abac, as empresas associadas (10, no total) querem aumentar a frota e a disponibilidade de serviço, mas dependem de mais segurança jurídica. “A regulamentação vai dizer pelo menos qual vai ser a política nos próximos anos. Até lá, está todo mundo muito cauteloso”, adianta.
Outra questão é definir pontos práticos que geram insegurança sobre como aplicar os investimentos para viabilizar a BR do Mar. Para Resano, criar um cenário favorável a aumento de demanda pela cabotagem e consequentes investimentos no setor passa por resolver alguns pontos controversos da legislação, como os incentivos a afretamento versus compra de navios, descontos em alíquotas de frete que vão impactar diretamente na diminuição do Fundo da Marinha Mercante, utilizado para financiar diversos projetos de fomento ao setor naval, além de questões trabalhistas e regras envolvendo as tripulações, que impactam diretamente nos custos e viabilidade das operações.
Representatividade da cabotagem
O transporte aquaviário no Brasil movimentou 1,209 bilhões de toneladas em 2022, segundo o último relatório do Anuário Estatístico Aquaviário da Antaq, divulgado em fevereiro. As navegações de longo curso de exportação e importação respondem pela maior parte dessa fatia, somando 849,6 milhões de toneladas. A cabotagem correspondeu a 283,3 milhões, englobando graneis líquidos, sólidos, carga geral e contêineres.
O crescimento da modalidade em 2022 foi de 1,8%, inferior aos 11% registrados em 2021. Isso aconteceu por conta dos impactos da seca na região amazônica, baixando o nível de calado dos navios e travando o segmento na região, segundo análise da Antaq. Nas regiões Sudeste e Sul, em compensação, a navegação por cabotagem teve aumento, com destaque para os portos do Rio de Janeiro (RJ), com 41%, e Itapoá (SC), com 35%.
Em Santos (SP), os embarques e desembarques por cabotagem totalizaram 18 milhões de toneladas no ano passado, 3,8% a mais que em 2021, mas com crescimento inferior à média dos dois anos anteriores, que ficou entre 6,5% e 8,3%, segundo dados da Autoridade Portuária de Santos. Já em Paranaguá (PR), a variação positiva entre 2021 e 2022 foi de 8,4%, passando de 2,7 toneladas para 2,9 toneladas movimentadas entre um ano e outro. A cabotagem representou, em 2022, 5% da movimentação total dos portos paranaenses, contra 4,7% em 2021, conforme informações da Portos do Paraná, que administra os portos de Paranaguá e Antonina.
A empresa pública vinculada ao governo paranaense cobra taxas até 50% inferiores em relação a outras tabelas nas operações por cabotagem nos portos do estado, como forma de incentivo à modalidade. Os descontos são nas tarifas de Infraestrutura de Acesso Aquaviário, Infraestrutura de Acostagem e Infraestrutura Terrestre, dependendo da mercadoria transportada e do tipo de embarcação, entre outras variáveis.
Caminho para crescer
Vê-se que é uma modalidade que cresce, mas muito discretamente para o potencial que agrega. “A cabotagem no Brasil, em termos de movimentação (de cargas), está em torno de 12%. Com o planejamento que o governo federal fez implantando esse projeto de lei e com a devida regulamentação, a estimativa era que alcançaria 30%”, analisa Ademar Dutra.
Além da regulamentação, necessária para estabelecer as condições de operação relativas à lei, o especialista acredita que é preciso uma acomodação do processo logístico. “Deve ser um processo gradativo. Para passar uma determinada mercadoria que é transportada pelo modal rodoviário para a cabotagem, há uma outra lógica logística que precisa ser construída, e há resistência muito forte do sistema rodoviário de abdicar desse tipo de transporte. O rodoviário acha que vai perder espaço, quando na verdade todos os estudos sinalizam que o rodoviário vai continuar movimentando essa carga, mas em trechos mais curtos.”
Da mesma forma que a legislação abriu caminho à operação com navios estrangeiros, o que deve facilitar a oferta de embarcações, também é preciso pensar em outro atrativo de redução de custos: os impostos que incidem sobre o bunker, o combustível do navio. “O combustível do navio de longo curso, que vai pra Ásia, tem tributação diferente do navio para navegação de cabotagem”, explica o gerente de Assuntos Estratégicos da Federação das Indústrias do Paraná (Fiep), João Mohr.
O professor e economista Luiz Antônio Fayet, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), conta que 24% do valor do combustível do navio usado para cabotagem no Brasil é composto por tributos. “É preciso haver uma nova legislação que estabeleça um teto e o estado que quiser pode zerar a tributação do bunker. O que vai acontecer é que os estados vão preferir zerar o bunker e ter navegação barata, e isso pode ajudar muito”, estima. A Lei da BR do Mar, entretanto, não contempla esse componente.
O que fica é a expectativa de que as soluções trazidas pela legislação atual se concretizem com a regulamentação e, assim, a oferta do serviço finalmente cresça. “Como são poucas empresas (que operam a cabotagem), e até hoje não tinham incentivo, a oferta é muito pequena. Hoje, a oferta de navios saindo do Sul em direção ao Nordeste é de um por semana. Se por um motivo perde essa escala, atrasa demais a operação e, com isso, o tempo acaba virando um outro inibidor”, avalia Mohr.
O ciclo deve fechar a partir das definições sobre as questões trabalhistas relativas à tripulação. “Caberá à regulamentação flexibilizar a CLT para quem está embarcado, já que a navegação exige regime de trabalho especial”, lembra o gerente da Fiep. Resolvidas essas questões, mais incentivos trariam mais investimentos, maior oferta de transporte e, consequentemente, o olhar do setor produtivo para o modal.
Mas ainda não é possível pensar em prazos para isso. De acordo com o Ministério de Portos e Aeroportos, a minuta de decreto da BR do Mar está sendo revisada pela equipe técnica da Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários (SNPTA) e deverá ser rediscutida com o setor e a sociedade. Assim que finalizada, seguirá o trâmite normal até a Casa Civil, para análise e posterior publicação – porém, ainda sem data definida.
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