O estímulo ao uso do transporte coletivo em detrimento do transporte individual sempre foi considerado uma solução para problemas de mobilidade urbana em grandes centros. A pandemia do novo coronavírus mudou o jogo: colocar mais gente nos ônibus passou a ser um risco à saúde pública. Com a possibilidade de o vírus se tornar endêmico, o transporte público é mais um dos setores que deverá ser repensado em uma perspectiva de longo prazo.
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“Há muito tempo sabemos do papel do transporte público na disseminação de doenças virais infecciosas, principalmente a influenza e síndromes respiratórias”, explica o médico infectologista Bernardo Montesanti Machado de Almeida, do Hospital de Clínicas (HC) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Mas, tirando períodos específicos, como da pandemia do H1N1, em 2009, o componente saúde não era tão relevante do ponto de vista de políticas públicas para a mobilidade urbana como é agora com o coronavirus.”
Mais do que aumentar a higienização dos ônibus, a solução deve passar pelo incentivo à multimodalidade e o desenvolvimento de polos regionais em grandes cidades, de modo a reduzir a necessidade de grandes deslocamentos. O compartilhamento de veículos e a adoção cada vez maior do home office também podem contribuir para a redução em problemas de tráfego nos centros urbanos.
“Em média, 20% das pessoas são responsáveis por 80% das transmissões do vírus”, explica o infectologista. “Quando há uma aglomeração, temos um potencial ambiente de supertransmissão que deve ser desestimulado, a menos que se adote um nível máximo de prevenção.”
Medidas preventivas, que ajudam a mitigar o problema, incluem o uso de máscaras respiratórias, higienização constante das mãos com álcool em gel e distanciamento de, no mínimo, um metro entre uma pessoa e outra. “Eu incluiria ainda evitar conversas dentro do transporte público”, diz Almeida. Na prática, no entanto, várias das recomendações não podem ser adotadas, uma vez que ônibus vazios, que permitam o distanciamento mínimo, geram prejuízo ao sistema de transporte.
Na China, uma pesquisa realizada pelo Ipsos com 1.620 participantes, revelou que a população deixou de priorizar o transporte público após o início do surto de Covid-19. Se antes 56% utilizavam ônibus ou metrô e apenas 34%, carros particulares; após o surgimento da doença, apenas 24% continuaram a usar o transporte coletivo, enquanto 66% passaram a se deslocar em um veículo particular.
Aumento no uso de carro particular pode levar trânsito a colapso
O que é certo é que incentivar o uso de veículos particulares não é viável em longo prazo. Em dez anos, a tendência é que o transporte de passageiros e de cargas entre em colapso caso seja mantido o ritmo de emplacamentos no Paraná, segundo o engenheiro civil Rafael Fontes Moretto, especialista em infraestrutura e transportes e diretor do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Paraná (Crea-PR). “O ideal é a diversidade de modais”, afirma.
De acordo com o Departamento de Trânsito do Paraná (Detran-PR), o número de veículos emplacados no estado cresceu 4% no período de fevereiro de 2019 a fevereiro de 2020, saltando de 7,23 milhões para 7,49 milhões. Na capital paranaense, o número de veículos – 1.456.576 –corresponde a 75% da população, estimada em 1.933.105, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O aumento no número de carros vem acompanhado de queda no total de usuários do transporte coletivo. Em quatro anos, o sistema de transporte público da região metropolitana de Curitiba perdeu 25% de seus passageiros: em 2015, eram 8,5 milhões de usuários, número que caiu para 6,3 milhões em 2019. A tendência se explicaria pelas altas no preço da passagem e pela regulamentação de aplicativos de transporte individual.
Com as medidas de isolamento social adotadas pelo governo do estado e prefeitura para reduzir a curva de transmissão do vírus da Covid-19, o número de passageiros despencou. “Desde o fim de março, estamos operando com 70% da frota para atender uma demanda de 30% do que era a média de passageiros”, diz Ogeny Pedro Maia Neto, presidente da Urbanização de Curitiba S.A. (Urbs), responsável pelo gerenciamento do transporte público na capital paranaense.
O cenário, claro, não se sustenta economicamente. Tanto é que o município arcará com aportes entre R$ 18 milhões e R$ 20 milhões mensais às empresas de ônibus para garantir o funcionamento do sistema, conforme especifica lei aprovada pela Câmara Municipal. O socorro está previsto para durar três meses, mas pode ser prorrogado dependendo da situação ao fim deste prazo inicial.
Polos regionais em grandes cidades
Para Maia Neto, o quadro de vulnerabilidade sanitária que a pandemia do coronavírus revelou deve levar as cidades a incentivarem um modelo de desenvolvimento de polos regionais, que reduza a necessidade de deslocamento das pessoas. “Curitiba é planejada para isso”, diz. “A maior parte dos trajetos poderia ser feita a pé ou de bicicleta, por exemplo, e o ônibus seria utilizado para distâncias maiores.”
Metrópoles como São Paulo e Cidade do México adotam esse modelo, que é defendido entre profissionais de saúde. “Do ponto de vista mais estrutural, o ideal é estimular outras formas de transporte”, diz o infectologista Bernardo Montesanti Machado de Almeida. Ele explica que a tendência é que o Sars-CoV-2 torne-se endêmico, ou seja, permaneça em circulação para sempre, em meio a tantos outros vírus.
A cidade de Milão, na Itália, uma das mais afetadas pelo coronavírus, anunciou que transformará 35 quilômetros de ruas em ciclovias, para evitar que as pessoas, com medo de utilizar o transporte público, voltem a usar carros no retorno às atividades. Bruxelas, na Bélgica, adotou medida semelhante, ampliando em 40 quilômetros a malha cicloviária. Outras cidades, como Vancouver, no Canadá; Budapeste, na Hungria; Nova York, nos Estados Unidos; e Bogotá, na Colômbia, fecharam ruas para permitir a circulação de bicicletas, por enquanto de modo provisório.
Outras medidas que poderiam ser adotadas para desafogar o transporte coletivo são o escalonamento em horários e dias de funcionamento de comércios e o compartilhamento de bicicletas e carros. “Muitos dos nossos hábitos de vida terão de ser adaptados”, afirma Almeida. “No planejamento dos sistemas de transporte público sempre foi priorizada a questão da capacidade, do tempo, do custo. Agora deve entrar mais essa variável: a redução dos danos provocados pela doença.”
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