Parceiros há 50 anos, Brasil e Paraguai fundamentaram o acordo para administração de uma das maiores usinas do mundo - até hoje, com base na diplomacia e negociação entre países vizinhos. Firmado no início da década de 1970, o Tratado de Itaipu é considerado por especialistas do setor elétrico um reflexo jurídico da obra imponente. À época, a engenharia diplomática de Brasil e Paraguai possibilitou a formalização do documento para a governança binacional entre dois países de dimensões geográficas e economia distintas, com demandas extremamente opostas pelo serviço de engenharia elétrica.
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Se a distância entre as margens de Foz do Iguaçu (PR) e Hernandarias, no Paraguai, é a mesma há meio século, entre as cidades divididas apenas pelo rio Paraná - onde está localizada a Itaipu Binacional, no campo diplomático, Brasil e Paraguai se afastaram drasticamente a partir de fevereiro de 2023, quando a empresa quitou o financiamento bilionário pela construção da hidrelétrica, no momento crucial em que os dois países passam a ter mais recursos provenientes da usina.
O estopim da crise é o Anexo C do Tratado de Itaipu, que estabelece o valor pago pela energia pertencente ao país vizinho, quando este não utiliza 50% da geração, prevista no acordo de divisão igual entre as partes. Como o Paraguai não possui demanda para o uso total da energia a que tem direito, a solução diplomática encontrada havia sido a venda para o Brasil, garantindo a aquisição por meio de cláusula que deu segurança para o empréstimo bilionário para a construção da hidrelétrica.
“Nesse histórico de 50 anos, o Brasil comprou de 88% a 95% da energia de Itaipu porque mesmo com o Paraguai tendo direito a 50%, o país só consumia por volta de 5% a 10%", afirma o sócio-fundador e diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), Bruno Pascon.
"Pelo contrato, a tarifa deveria cair para US$ 16,71 por kilowatt (kW), que representa uma queda de 20% no valor da tarifa paga pelo Brasil para a compra do excedente de energia paraguaio”. Esse deveria ter sido valor pago no ano passado pela cessão da energia do país parceiro, no entanto, o preço cobrado pelos paraguaios ficou acima da tarifa técnica.
Em 2022, segundo o Instituto Acende Brasil, a amortização da dívida custou US$ 1,3 bilhão. Sem a parcela bilionária, o custo do kilowatt de Itaipu passaria a ser calculado com base na cobertura apenas de despesas.
Segundo Pascon, Itaipu representa 7% da conta de energia elétrica e se a redução prevista de 20% no valor pago pelo Brasil ao Paraguai fosse confirmada, o impacto redutor seria de 1,4% na conta de luz. A redução poderia ser ainda maior se a última proposta brasileira de US$ 14,77 para tarifa de 2024 tivesse sido aceita pelos representantes paraguaios, que insistem na cobrança acima de US$ 20.
“O Brasil sempre defendeu a compra de excedente com base na tarifa técnica. Mas na negociação política, a tarifa sempre fica um pouco maior para atender o Paraguai. A usina tem um peso grande para o PIB [Produto Interno Bruto] do país e quando vende o excedente, o governo procura o melhor preço possível. Para o lado paraguaio, o assunto é muito sensível por uma questão política”, comenta o especialista no setor.
Longe de um consenso, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e o ministro de Relações Exteriores, Mauro Vieira, apresentaram, no último dia 5, a proposta de US$ 14,77 por kilowatt diante do valor de US$ 22,60 proposto previamente por representantes do presidente Santiago Peña, o que equivale a quase 50% de diferença. Não houve consenso entre as partes. “No ano passado, o preço era de US$ 16,71 mas outras despesas foram eliminadas. A proposta de US$ 14,77 mantém um valor substancial para o Brasil e para o Paraguai”, justifica o diretor brasileiro de Itaipu, Enio Verri.
Além de não ser contemplado com o desconto, o consumidor brasileiro ainda deve ter que arcar com uma conta de energia elétrica mais cara em 2024, com percentual de reajuste acima da inflação.
Dependendo das negociações entre Brasil e Paraguai, a alta da energia elétrica pode ter um impacto ainda maior no orçamento das famílias brasileiras. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) anunciou que a tarifa deve subir 5,8%, dois pontos percentuais acima da inflação. “Essa estimativa de reajuste médio de tarifa foi feita com base no valor a US$ 16,71. Se aplicar uma tarifa no meio do caminho entre as propostas de Brasil e Paraguai, o reajuste para os consumidores atendidos pelas distribuidoras de Sul e Sudeste pode chegar a 6,5%”, calcula Pascon.
Venda do excedente de energia do Paraguai a outros países não é opção simples
Questionado sobre o argumento paraguaio de que pode preferir exportar energia para outros países, se não chegar a um acordo com o Brasil, o diretor do CBIE ressaltou que a medida precisaria ser precedida de investimentos na infraestrutura para construção do sistema de interligação energética com os vizinhos na América do Sul.
"Não existe uma interligação de Itaipu com qualquer outro país. Toda energia é vendida ao mercado brasileiro e, para exportar para outros países, o Paraguai iria precisar construir linhas de transmissão".
Sócio-fundador e diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), Bruno Pascon
Isso custa e até poderia ser feito, avalia o especialista. "No entanto, historicamente, o Paraguai sempre pressionou a compra da energia pelo mercado brasileiro na maior tarifa possível”, respondeu.
Itaipu é um bom negócio, principalmente para o Paraguai
Um estudo do Instituto Acende Brasil, com dados anuais de receitas e despesas da Itaipu Binacional entre 1974 e 2022, aponta que o Brasil custeou pagamentos líquidos que somados chegam a US$ 85,7 bilhões, enquanto o Paraguai teve um lucro de US$ 5,9 bilhões em quase 50 anos de parceria.
De acordo com o levantamento, o custo pela construção de Itaipu foi “efetivamente pago inteiramente” pelo Brasil, sendo que o Paraguai não só teve seu suprimento de energia assegurado pela Itaipu Binacional, mas foi uma importante fonte de receita para a economia do país durante o período.
O presidente do Instituto Acende Brasil, Cláudio Sales, lembra que o Brasil foi responsável pelo pagamento de 85% das receitas geradas por Itaipu em 2022, o que significa um custo de US$ 2,7 bilhões. Por outro lado, 64% dos repasses de Itaipu foram destinados ao Paraguai, principalmente royalties e a remuneração por cessão de energia. Neste último componente, o Brasil pagou US$ 218 milhões ao lado paraguaio em 2022.
“O país que cede energia para o outro recebe US$ 300 por gigawatt-hora. É um valor fixo que foi estimado como suficiente para que o Paraguai conseguisse comprar a parte de energia dele, somado aos outros itens. Isso explica em parte o descasamento entre o dinheiro e o fluxo de energia”, comentou Sales, ao lembrar que no ano do estudo o Brasil consumiu 76% da energia fornecida por Itaipu.
Ele lembra que no primeiro ano de construção da usina, Brasil e Paraguai fizeram um aporte de US$ 25 milhões na obra, ressarcido anualmente por meio da receita de capital, mas a partir do funcionamento da hidrelétrica, o lado brasileiro assumiu os custos pela hidrelétrica, na prática.
“Em 1985, começou a se retirar a energia de Itaipu e a partir daquele momento só houve pagamentos por parte do Brasil. O Paraguai não fez pagamentos líquidos para Itaipu, pois o que ele recebeu de royalties, remuneração de cessão de energia, ressarcimento de administração e rendimento de capital foi mais que suficiente para comprar toda a energia necessária para o país em todo esse período”, argumenta o presidente do Acende Brasil.
Atualmente, a participação paraguaia no consumo da energia produzida pela Itaipu Binacional é de 24%, com tendência de atingir a metade que tem direito até 2033, de acordo com projeções da Administradora Nacional de Eletricidade (Ande), seguindo a tendência de crescimento econômico na última década. Entre 1985 e 2010, o consumo paraguaio foi de 2% para 8%. Depois disso, em 10 anos, o estudo do Acende Brasil revela um salto de 9% para 24% do consumo de Itaipu pelos paraguaios.
“É muito comum ouvir no Paraguai, principalmente em discursos políticos inflamados em períodos eleitorais de todas as correntes, expressões como ‘o Brasil explora o Paraguai’ por conta da relação entre os dois países na Itaipu. Pelo contrário, o Paraguai não colocou dinheiro, lucrou US$ 5,9 bilhões e hoje é dono de metade dessa usina que deve ter uma tarifa mais barata pelo impacto positivo com o fim do financiamento”, avalia Sales, que descarta o descumprimento de qualquer cláusula pelo lado brasileiro.
“Não está na mesa não contratar a energia de Itaipu, pois o tratado impõe que essa energia precisa ser contratada. O que está na mesa é a expectativa de que a tarifa seja calculada pelo custo e, se isso caiu, a tarifa deve cair proporcionalmente”, defende.
Apropriação de excedente é ponto sensível nas negociações do Tratado de Itaipu
Os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo alertam para um ponto crítico nas negociações entre os dois países, que envolve o excedente de energia elétrica gerado pela hidrelétrica de Itaipu, acima da expectativa prevista para um período, o que pode ocorrer em um ano de hidrologia favorável, por exemplo. Esse excedente passou a ser apropriado em sua totalidade pelos paraguaios, provocando mais desequilíbrio nas relações, segundo a análise do presidente do Instituto Acende Brasil, Cláudio Sales.
De acordo com ele, o custo de Itaipu é calculado pela energia vinculada, que é uma expectativa de consumo de cada país, conforme a potência contratada por Brasil e Paraguai. Ou seja, o excedente fica fora desse custo, gerando energia de qualidade com baixíssimo preço. “Um ano muito bom tem uma geração acima da energia vinculada. Como os custos de Itaipu foram rateados com base na potência declarada pelos dois países, essa energia não faz parte da divisão de custos. Então, ela se torna mais barata. O problema é que esse excedente também deveria ser dividido entre os dois países. Mas o que acontece é que o Paraguai se apropriou dele integralmente”, afirma Sales.
Ainda conforme o presidente do Acende Brasil, a situação ficou mais delicada nos últimos anos, marcados pela escassez de chuvas e hidrologia ruim. “O Paraguai teria mudado a previsão de energia vinculada para gerar, artificialmente, um excedente para continuar se apropriando da energia mais em conta. É uma dupla forçação de barra com prejuízo muito grande para o lado brasileiro”, critica.
O diretor do CBIE, por sua vez, lembra que o contrato de Itaipu prevê cerca de 75 milhões de megawatts-hora, mas a usina já bateu recorde de 106 milhões de megawatts-hora, sendo que esse excedente tem uma tarifa de pouco mais de US$ 3,34 por kW. “O Paraguai comprou praticamente todo o excedente de energia e vendeu para o Brasil por um preço maior. A diferença ficou para a empresa do governo federal, que calcula prejuízo de R$ 10 bilhões entre 2018 e 2022”, aponta.
Após a privatização da Eletrobras, o ativo de Itaipu passou a ser administrado pela Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional (Enbpar). “Imbróglios são técnicos, mas as soluções são políticas. O primeiro é o valor da tarifa e o segundo é quem vai pagar esse buraco nas contas que se formou no caixa da Enbpar no período de quatro anos. A venda de excedente entre parceiros nunca deveria gerar prejuízo para um deles e ganho para o outro lado. O Paraguai deveria ressarcir a Enbpar por esse prejuízo e ainda aceitar uma tarifa pelo menos 20% menor do que a praticada anteriormente. Politicamente é complexo. Tecnicamente não é tão complexo assim”, analisa Pascon.
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