Ainda no início da pandemia de coronavírus em Curitiba, Keith Weiss começou a ajudar os filhos de 11 e 5 anos a fazer as tarefas entregues pelas escolas na garagem de casa, localizada em uma estreita rua na comunidade Primeiro de Maio, no bairro Cidade Industrial. Não demorou para uma criança passar ali na frente e pedir ajuda com a lição. De lá para cá o número de alunos gira em torno de 45, e Keith precisou organizar turnos para abrigar os interessados. Dentro da sua residência, seguindo as diretrizes sanitárias de distanciamento, uso de máscara e higiene das mãos, ela diz querer ajudar as crianças na busca por um futuro melhor.
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Para fazer o “aulão comunitário”, Keith não recebe nenhum valor: são famílias da vizinhança que confiam na liderança dela para garantir o aprendizado do conteúdo, desde aquele da pré-escola, passando pela alfabetização dos anos iniciais e avançando até a sexta e sétima série. “Se eu não sei, aprendo junto”, diz ela, que só conseguiu estudar até a 8ª série, fato que a entristece. Na comunidade, são poucas as pessoas que permanecem em casa que têm condições de ajudar os filhos com as lições remotas.
Segundo Keith, a continuidade dos estudos ajuda as crianças na percepção da realidade. “Mesmo nesse caos que a gente está vivendo, a vida não para, o trabalho não para. É importante para essas crianças verem que tem alguém trabalhando para eles comerem, terem água, ter um lugar para dormir. Vamos continuar estudando, brincando, com distância, com máscara”, diz.
A preocupação com as normas de higiene ronda todo o trabalho desenvolvido. “Não estou contra a saúde pública. Mas sim a favor da saúde educativa deles. Eu sei respeitar, eles sabem respeitar, ninguém fica aqui com resfriado. A gente lava tudo aqui, com álcool, jogo água sanitária, por mais que seja tapete, vou lavando. Para que a gente não se contamine”, explica.
Keith providenciou duas mesas: irmãos e irmãs ficam mais próximos entre si, e as demais crianças ficam mais afastadas. Na hora em que as crianças se levantam para beber água, vem o alerta: “Crianças, olha o distanciamento”, e elas esticam os braços para medir a distância adequada. A máscara de pano já virou costume, mas o escudo facial gera reclamações. “Espero que vendo as fotos do meu trabalho tenham o bom senso de elogiar, de ver o que a comunidade pode fazer. Porque muitos que moram no asfalto não estão fazendo nada”, observa.
Alguns estudantes acompanham a aula online e em seguida fazem as atividades impressas. Aos gritos de “tia”, ou “Keith”, pedem ajuda para entender a atividade. Nem sempre o que é transmitido pela internet corresponde ao material entregue pelas escolas. Há várias municipais e estaduais que atendem crianças da comunidade. No dia de entrega dos materiais, ela vai até as instituições e faz comentários, pedidos, mas lamenta a falta de interesse nas suas ideias.
O letramento das crianças pequenas também é uma preocupação para Keith. Um dos meninos presentes, que ficou bastante concentrado nas atividade, pede para falar com a repórter. Comento que ele fez bastante atividades e pergunto em que série está “Quarto ano D. Eu não sei ler nem escrever”, conta, descrevendo sua situação de forma sincera e tranquila, como somente as crianças conseguem fazer. “É muito legal”, conta, a respeito das aulas de Keith. A líder comunitária imprimiu um alfabeto ilustrado para os menores terem sempre consigo, e ajuda Miguel a fazer caça-palavras. “Tem outras crianças com problema de ler ou escrever. Às vezes a gente tem que virar psicóloga, fonoaudióloga, professora, às vezes a gente faz o papel de tia, de mãe”, relata.
Estudo afastam crianças de riscos sociais
Keith também organiza algumas brincadeiras e rodas de conversa. Após as atividades ela costuma servir pipoca. Mas há crianças que ao chegar já pedem um pão ou um café, por não terem comido nada em casa. Da Central Única das Favelas (CUFA), a comunidade recebe cestas básicas, álcool e máscaras, angariados com grandes empresas e pessoas físicas. Mas Keith diz que gostaria de ter ajuda para as atividades escolares. “As crianças às vezes não têm lápis de escrever, borracha, lápis de cor. Eu peço para a mãe mandar, tem aqueles que falam que não têm condição, ou porque a mãe comprou um refrigerante para a família e não sobrou nada. Outros dizem que a mãe não sabe ver número, e agora não podem entrar junto no mercado para comprar”, descreve.
Quando chove, como na semana fria que se passou em Curitiba, Keith cobre a garagem com lonas, mas há pingos, e ela diz que gostaria de ter melhores condições de receber a criançada. “Não é porque mora na favela que tem que se tornar um bandido. Tem que ter sua vida, um trabalho digno, fazer faculdade, ter a dignidade de colocar a mãe numa casa melhor. Nessa pandemia, tem muito jovem que em vez de estar estudando, está na rua. Enquanto na periferia, estão aqui, buscando uma vida melhor. Não é porque pisam no barro que vai haver a diferença. Aliás, a diferença vai ser por ter pisado no barro saber o custo que é conseguir algo”, comenta.
A líder comunitária diz temer uma reabertura de escolas neste momento, por ver dificuldade em controlar todas as crianças. Mas sabe do risco social envolvido com o fechamento das escolas por muito tempo: “Tem crianças com 10 anos que estão usando drogas, colocam armas nas mãos dessas crianças. Então prefiro abrir o espaço da minha casa, tomando todos os cuidados, ensinando as aulas. Hoje em dia as pessoas podem se reconhecer como pessoa da favela, mas amanhã podem se lembrar do tempo em que moravam na favela, pois a diferença foi feita. E minha missão terá sido cumprida”, diz, esperançosa.
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