Francisco* alcança um livro no alto da estante da biblioteca da Casa de Custódia de Piraquara (CCP), como se se agarrasse a uma chance que não chegou a ter quando estava em liberdade. De família humilde, aos 13 anos, se viu obrigado a abandonar os estudos para trabalhar. Estava, então, na sexta série. Hoje “pagando” condenação de 16 anos por homicídio, foi dentro do presídio que ele pôde retomar os estudos. Atrás das grades e em regime fechado, o detento concluiu o ensino fundamental, o médio e cursa, agora, pedagogia por meio de um programa de ensino à distância. Confira o vídeo.
Três vezes por semana, o homem de 47 anos e traços rústicos se senta a um dos computadores da sala de informática da CCP. Se não fossem os uniformes dos presos, o ambiente pouco lembraria um anexo de presídio: não há grades, agentes penitenciários ou algemas. Ali, Francisco estuda o material disponibilizado pela faculdade, via internet. Posteriormente, pode complementar o aprendizado na biblioteca ou em uma das salas de aula da unidade – essas, sim, com grades.
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Francisco fala como um apaixonado pelo curso, pelo potencial transformador da educação e vislumbra lecionar para outros presos, ainda durante o cumprimento da pena. Fã do romancista afegão Khaled Hosseini – autor de O Caçador de Pipas –, o preso se reaproximou das letras a partir do programa de remição pela leitura, que abate quatro dias de pena a cada livro lido. Foi o ponto de partida para que ele retomasse sua educação formal.
“A leitura me salvou e me proporcionou tudo isso. Eu me identifiquei bastante com esse universo e posso dizer que os livros me mudaram. O que eu quero é levar a leitura a outros presos como eu”, disse Francisco, com convicção. “Na minha vida na rua [em liberdade], eu só tinha lido dois livros, [ambos] do Paulo Coelho. Aqui, já li mais de 40, de tudo que é assunto.”
Casos como o dele ainda são raros, mas os números vêm aumentando aos poucos. Em 2014, apenas oito detentos de penitenciárias paranaenses cursavam curso superior (0,06% da massa carcerária). Neste ano, 34 internos dos 20,9 mil que permanecem custodiados em presídios do Paraná (0,16%) estão matriculados no terceiro grau, segundo o Departamento Penitenciário do Estado (Depen).
Como um empresário
No presídio-modelo do complexo penal de Piraquara, a Penitenciária Central do Estado – Unidade Progressão (PCE-UP), Rogério* já molda seu discurso ao de um empresário. Com os conceitos aprendidos no curso de tecnologia em gestão comercial, o preso de 34 anos já esboçou – escrito à mão – um projeto de negócio para quando ganhar a liberdade.
“Eu quero abrir um açougue com distribuidora de bebidas, voltado a atender pequenos restaurantes. A ideia é, também, desenvolver um aplicativo, para o cliente fazer o pedido pelo celular. A crise pode pegar o comércio geral, mas alimentação sempre está em alta”, discorreu o detento, pontuando o discurso com gestos firmes.
“Muita gente acha que não tem que ter nada disso, que a gente não merece. (...). As pessoas têm que ver que, com isso aqui [educação], a perspectiva de reincidência é zero.”
Vagner*, detento da CCP
Na “vida lá fora”, Rogério já teve seu próprio negócio. Foi dono de uma instaladora de películas em vidros de carros e proprietário de loja de automóveis usados. Com o avançar do curso superior, ele percebeu erros que cometeu em seus antigos empreendimentos e já se considera apto para enfrentar os futuros desafios.
“Na época, não fiz pesquisa nem de mercado. Minha loja de películas, por exemplo, ficava em uma região que não tinha a menor demanda. Eu não tinha conhecimentos básicos. Hoje, com o que aprendi no curso, eu jamais cometeria essas falhas”, ponderou o detento, condenado a dez anos de prisão, por associação criminosa e posse de arma.
Surpresa e preconceito
A porta que dá acesso dos detentos ao ensino superior é o Exame Nacional do Ensino Médio para privados de liberdade (Enem PPL). As provas são aplicadas dentro das respectivas penitenciárias e, conforme a pontuação obtida, os presos podem reivindicar bolsas integrais ou parciais e escolher o curso. No ano passado, 1.153 presos do Paraná fizeram o exame. Antes de se inscrever, a maioria deles não sabia sequer que havia possibilidade de cursar ensino superior dentro do cárcere.
“Isso nem passava pela minha cabeça. A pedagoga da unidade trouxe a informação e eu agarrei a oportunidade com as duas mãos e com os dois pés. Em meio a tanta dificuldade, para mim estudar é uma vitória e um orgulho”, definiu Fábio*, de 29 anos, aluno de educação física e preso na CCP.
“O estudo aqui é uma possibilidade que muitos deles não teve lá fora. É o que faz com que eles vislumbrem uma outra vida. Nós acreditamos muito na transformação pela educação.”
Vanessa Kokott, pedagoga
Apesar de estarem encarcerados, os detentos não estão alheios às críticas que vêm de “gente lá de fora”, recriminando programas de ressocialização, como a remição pela leitura e a oferta de ensino aos presos. Há dois anos e oito meses no sistema penitenciário, Vagner* destaca a força da educação de “devolver pessoas melhores” à sociedade. O detento, que está custodiado na CCP e matriculado em marketing, apenas lamenta o fato de os projetos não terem capacidade de absorver um número maior de internos – principalmente, por não haver centrais de informática em todos os presídios.
“Muita gente acha que não tem que ter nada disso, que a gente não merece. Depois que eu entrei [no sistema], eu procurei me cercar do melhor. As pessoas têm que ver que, com isso aqui [educação], a perspectiva de reincidência é zero”, argumentou. “Tem muita gente ali nas celas que poderia estar aqui nesses computadores. Eu acho um desperdício.”
Na PCE-UP, Rogério tem opinião semelhante. Ele destaca que a oportunidade de se formar não beneficiou apenas seu futuro profissional, mas o transformou como cidadão – o que, por consequência, vai mantê-lo definitivamente longe do crime. “Eu estou preso, mas vou sair com mais conhecimento do que entrei. Dizem que tem que matar todos os presos, que bandido bom é bandido morto. Eu acho que bandido bom é bandido ressocializado”, opinou.
Improviso para superar problemas
Mas nem tudo funciona às mil maravilhas, é verdade. Logo no início do curso, por exemplo, Francisco percebeu que não conseguia acessar as vídeo-aulas disponibilizadas pela faculdade, porque o conteúdo havia sido bloqueado pelo presídio. Para contornar a dificuldade, o jeito foi focar os estudos nas apostilas digitais e pedir uma ajuda para a família.
“Quando tem visita, eu passo a eles os temas que estou estudando. Eles baixam conteúdo em um pen-drive. Vídeos, textos, pesquisas... Aí me entregam na visita seguinte”, disse. Os outros quatro presos entrevistados pela Gazeta do Povo também relataram problemas pontuais com links restringidos, mas também não davam mostras de esmorecimento diante do entrave. “Difícil é pra todo mundo. A gente tem que contornar”, afirmou Adil*, que estuda administração de empresas.
“Eu estou preso, mas vou sair com mais conhecimento do que entrei. Dizem que tem que matar todos os presos, que bandido bom é bandido morto. Eu acho que bandido bom é bandido ressocializado.”
Rogério*, preso na PCE-UP, condenado por associação criminosa
Aluno de educação física – curso que tem uma grande ênfase na prática –, Fábio prevê obstáculos adiante. Por enquanto, as disciplinas se concentram em aspectos teóricos da profissão, mas nos próximos semestres devem começar, aos poucos, a se dirigir às etapas práticas. Para superar esse obstáculo, o universitário pensa em propor projetos esportivos voltados aos próprios presos. “A gente tem que adaptar à nossa realidade. E fazer algo direcionado para aqui dentro é uma forma de devolver o que eu recebi de bom”, sintetiza.
A gente acaba fazendo essa ponte, para sanar todas as dificuldades e conseguir tudo o que eles precisarem”, disse a pedagoga Keli Marina Souza, que atua na CCP.
*Os nomes foram alterados para preservar o anonimato dos presos
“Nós acreditamos na transformação pela educação”, diz pedagoga
Quem acompanha o desenvolvimento pedagógico dos presos atesta: a educação é determinante no processo de ressocialização. De acordo com as pedagogas das unidades prisionais, o índice de reincidência é quase nulo entre os detentos que puderam estudar ao longo do cumprimento de pena. É como se a oportunidade de ter um livro em mãos fosse capaz, mesmo, de mudar a vida de quem já esteve ligado ao crime.
“O estudo aqui é uma possibilidade que muitos deles não tiveram lá fora. É o que faz com que eles vislumbrem uma outra vida. Nós acreditamos muito na transformação pela educação”, assinalou a pedagoga Vanessa Kokott. “A educação, sem dúvida, acaba sendo um fator decisivo de mudança”, reforçou a pedagoga Keli Souza.
As profissionais da educação não falam apenas do ensino superior, mas colocam neste cenário, também, outras modalidades de estudo ofertadas nos presídios. Neste ano, por exemplo, quase 3,9 mil detentos estão cursando o ensino fundamental e mais de 1,6 mil, o ensino médio, em unidades penais do Paraná.
“Quem tem a oportunidade, não desperdiça. Nós praticamente não vemos faltas. A gente vê que vale acreditar no ser humano”, observou Keli, que há cinco anos trabalha em presídios.
“Essa oportunidade abre uma visão de mundo enorme. Teve uma presa que concluiu os ensinos fundamental e médio aqui, e que, lá fora, fez pedagogia. Ela diz que fez por minha causa, por tudo que me viu fazendo aqui dentro. As mudanças são concretas”, afirmou Vanessa.
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