• Carregando...
Balões soltos durante comemoração do Dia Mundial de Conscientização do Autismo: luta por maior visibilidade. | Henry Milleo/Gazeta do Povo
Balões soltos durante comemoração do Dia Mundial de Conscientização do Autismo: luta por maior visibilidade.| Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo

“Enfim começamos a ser vistos.” É com essa frase que a terapeuta e mãe Adriana Czelusniak comenta anúncios recentes da prefeitura de Curitiba e do governo do estado. Isolada, a reação já transparece uma realidade que é de mais dificuldades do que conquistas: o filho, Gabriel, tem Transtorno do Espectro Autista (TEA), ainda um bicho-papão pela pouca informação quanto às causas e a certeza da falta de cura.

Para melhorar o atendimento aos casos de atraso no neurodesenvolvimento, Curitiba firmou, em março, parceria com a Organização Mundial da Saúde e a Fundação Autism Speaks. O foco é a capacitação. Por sua vez, o estado lançou programa de atenção específico no dia 26 de junho.

“São avanços importantíssimos. Não falo nem em possíveis resultados, mas nas iniciativas. Finalmente o poder público desperta. Foram anos de cobrança e agora a gente começa a colher frutos. Primeiramente com a Lei Berenice Piana [Lei 12.764/12, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos das Pessoas com TEA] e a criação de centros de atendimento, formação continuada. Precisa de muito, mas agora há esperança”, resume Adriana, que integra ainda a União de Pais Pelo Autismo (Uppa).

LEIA MAIS: Aprender uma segunda língua pode ajudar crianças autistas

A percepção de entidades voltadas ao apoio de famílias e pessoas com autismo é otimista: encaram os programas como promessa de franca evolução. A esperança de futuro, entretanto, convive com um difícil presente. Elyse Mattos, fundadora do Instituto Ico Project, parceiro no programa municipal, avalia que “embora tanto o estado como a capital ofereçam serviços, a demanda é muito maior que a oferta”, e completa: “além das questões ligadas à saúde, temos a escola. Precisamos integrar, só com visão global conseguiremos atingir o potencial dessas crianças”.

Caminho árduo

Falando-se em protocolo de rede pública, a criança é encaminhada para a neuropediatria assim que constatados indícios de atraso, mas em paralelo – ainda antes de um diagnóstico específico – é feito o encaminhamento para os ambulatórios da prefeitura. É quando começam atividades clínicas e terapêuticas, como fonoaudiologia, terapia ocupacional e psicologia, essenciais para o desenvolvimento.

Apesar da existência desses serviços, há ainda a busca por atendimentos oferecidos por redes privadas, associações e organizações alheias à administração pública. Em meio a isso, o relato é sempre similar: de dificuldades em compreender totalmente o significado do diagnóstico e os caminhos a serem trilhados para conseguir atenção especializada, passando pelas singularidades de cada caso. Aqui, destaca-se o fato de que o espectro do autismo é amplo, tem variados graus (do mais leve ao severo), com diferentes comprometimentos, seja de linguagem, comunicação, comportamental.

O diagnóstico de Alexandre, 7 anos, trouxe numerosas dúvidas para a mãe Mirian Cristina de Souza, que diz ter encontrado base na Associação de Atendimento e Apoio ao Autista (Aampara), fundada em 2006. A mãe admite reservas com o rótulo do autismo e sofre para entender as necessidades do filho, culpa da falta de orientação inicial sólida. O menino foi diagnosticado quando chegava aos 4 anos, por mudança brusca de comportamento na creche. “Ele se afastou, não brincava, e foi difícil. Fala-se em direitos, mas está só no papel, pois você não sabe o que é, não sabe como lidar; vai em um lugar a pessoa fala uma coisa, vai em outro, fala outra e você não sabe como agir”, desabafa. E continua: “não entrou na cabeça ainda, mas a gente luta, porque, se tiver olhos de coitadinho, ele não cresce. E ele tem que crescer”.

A presidente da associação, Rosimere Benites, também sentiu as dificuldades quando buscava atendimento para a filha, que aguardou cinco anos por um diagnóstico fechado. Relembra que “deram uma lista de terapias, e a gente que depende do SUS foi procurar. Passava pela avaliação e eles já chegavam com uma cartinha assim ‘mãe, eu não sei lidar com a sua filha’. Foi uma maratona incansável”.

Essa busca constante por tratamentos e atenção especializada é destacada pelo coordenador técnico do Programa de Cuidado às Pessoas com Atraso no Desenvolvimento da Secretaria Municipal da Saúde, Joari Stahlschimdt. Segundo ele, essa “peregrinação” é algo que a prefeitura quer evitar e explica: “o que não queremos é aquela mãe que começa nesse serviço e, por algum motivo sai e consegue outro atendimento lá, e nós não conseguimos fazer o devido acompanhamento. É o principal desafio a médio prazo, ter uma rede formada, com tudo o que é oferecido pelo município ou por particulares”.

LEIA MAIS: Uma em cada cinco crianças no mundo tem algum transtorno mental; quais os sinais?

Na mesma linha, a terapeuta ocupacional da secretaria Márcia Valiati afirma que é preciso respeitar a família, mas sem que a criança se perca nesse processo. “Nessas idas e vindas, a criança é fragmentada. A ideia é a gente ter um registro do nível de desenvolvimento, o que fez, que medicamentos tomou”. E vai além: diz que é necessária uma mudança de paradigma. “É diferente de outros tratamentos: essa criança migra o seu desenvolvimento, surgem novas demandas, é reavaliada o tempo todo. É preciso discutir clinicamente o que o autista precisa agora, nem sempre tudo é necessário agora”, pondera.

Conflito na sala de aula

Junto da saúde, a educação é peça fundamental na inclusão e ambas têm acompanhamento próximo do Ministério Público do Paraná (MP). Nesse contexto, o ensino municipal é a principal preocupação apontada pela procuradora de Justiça Rosana Beraldi Bevervanço, coordenadora de Centro de Apoio Operacional nas Promotorias de Proteção à Pessoa com Deficiência e ao Idoso. “Em Curitiba, questiona-se o profissional de apoio na escola: esse atendimento não poder ser por estagiário”, entende a representante do MP. Atualmente, as promotorias trabalham com a perspectiva de um termo de ajustamento de conduta a ser proposto, diante da avaliação de que a postura municipal vai contra a Lei Brasileira de Inclusão (LBI).

LEIA MAIS: Crianças autistas são mais criativas, mesmo sem estrutura escolar adequada

De seu lado, a secretária da Educação de Curitiba, Maria Sílvia Bacila, não vê irregularidades. Afirma que os 640 matriculados com altíssima prioridade e que necessitam de profissional para higiene, locomoção e alimentação têm esse apoio e argumenta: “o fato de o município optar por um acadêmico é uma opção que valoriza o estudo que essas pessoas já fazem e já trazem do seu referencial pessoal”. Sobre o questionamento do MP, defende: “segundo a LBI, é uma pessoa que fará o atendimento nessas três áreas, sem confrontar com outro profissional já estabelecido no ambiente escolar. Não pode confrontar com a profissão professor, pedagogo, deve ser uma pessoa efetivamente de apoio”, interpreta. De acordo com o município, todas essas figuras de apoio recebem capacitações de ao menos 36 horas anuais; em 2017, foram 56 horas.

Hoje, o público da inclusão da educação municipal – dentre eles o de autistas – soma 2.205 crianças e estudantes em escolas e CMEIs regulares, além de 821 nas unidades especiais. Conforme o município, todos passam pela construção de um Plano Integrado de Cuidados, com trabalho intersetorial educação/saúde.

Projeto-piloto

Dificuldade central também envolvem o estigma e a falta de informação que, para a representante do Ico Project, Elyse Mattos, podem ser minimizados com as capacitações a serem colocadas em prática no município e no estado: “eles têm o condão de criar conscientização. É o conhecimento que combate o preconceito”, resume.

O programa que surge como projeto-piloto em Curitiba é pioneiro ao trazer a expertise da OMS/Autism Speaks, que pela primeira vez firma parceria com uma administração municipal. A metodologia está em fase de adaptação, começará a ser aplicada na cidade para, então, se estender a todo o país. Este último semestre será de “pré-piloto” com oito a 12 famílias consideradas prioritárias; a partir de 2019, serão 48 famílias. Vencida essa etapa, o objetivo é a implantação definitiva na rede pública, com capacitação de 288 famílias/ano. A meta: em cinco anos alcançar a totalidade da estatística prevista para o quadro clínico na faixa etária de 2 a 9 anos. Conforme cálculo da própria OMS, estima-se que Curitiba tenha mais de 20 mil autistas.

LEIA MAIS:Problemas de comportamento na escola podem ser indícios de TOD

Também nessa esteira de criação de rede de capacitação e apoio especializado, o anúncio mais recente do governo do estado prevê a criação de um esperado cadastro. Conforme o secretário estadual da Saúde, Antônio Carlos Nardi, a medida permitirá um censo da pessoa com autismo de modo a direcionar políticas públicas e alcançar a ponta, com atendimento próximo e facilitado.

Ainda no programa estadual, fala-se em ampliação dos Centros Regionais de Atendimento Integrado ao Deficiente (Craid), em especial para referência em diagnóstico diferencial, apontado como um desafio pelo diretor Lean Franco. “A intenção é que se perceba os sinais e se inicie o atendimento. Não interessa carimbar a criança”, afirma, numa tônica adotada também pela terapeuta ocupacional da prefeitura Márcia Valiati ao defender que o diagnóstico serve para direcionar o trabalho: “é apenas isso. A partir daí trata-se o indivíduo, como qualquer outro”.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]