Todo dia nosso lixo segue uma rotina sempre igual, pelo menos desde o fim dos anos 1980: acomodado em sacos, é recolhido por caminhões, compactado, transportado por dezenas de quilômetros até uma área ao sul de Curitiba, pesado e depositado em aterro. Em 2001, os municípios da região metropolitana (RMC) se juntaram para tentar modernizar e baratear o sistema, ainda sem sucesso. Sucederam-se prefeitos, problemas de gestão e entraves jurídicos. O resultado é que a capital paranaense, outrora vanguardista ecológica, entrou em 2018 sem conseguir lançar uma licitação para a simples coleta e transporte de resíduos residenciais, e está recorrendo a contratos emergenciais para manter o serviço mais essencial e abrangente da cidade – e um dos mais caros.
Em agosto de 2017, a prefeitura lançou um edital, no valor de R$ 1 bilhão, dividido em três lotes e com contrato previsto por 60 meses, mas a concorrência foi suspensa devido a duas liminares do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PR). Entre as justificativas, a aglutinação de serviços em lotes únicos, vedação de participação de consórcios, custos subdimensionados e outros considerados muito altos (operação de aterros e encargos sociais).
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Segundo Edelcio Marques dos Reis, superintendente de Controle Ambiental da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMMA), a prefeitura prestou os esclarecimentos requeridos, mas ainda não houve decisão de mérito e por isso ainda se aguarda uma definição. “Então poderemos analisar quais as sugestões e onde podemos melhorar. Mas, se entendermos que não há razão para isso, a gente vai levar à discussão. Eles fazem o papel de órgão controlador, a gente de gestor, mas queremos resolver da melhor forma, com preço justo e qualidade da forma como a população está acostumada”, explica. A princípio, a prefeitura fala que a planilha apresentada pelo TCE-PR onera o serviço. E que a participação de consórcios não seria necessária, porque há várias empresas capacitadas. Também tramita na Justiça comum uma ação popular questionando a licitação.
O modelo que continua sendo utilizado é mais defasado do que o de 2007, que não foi para frente por conta de entraves jurídicos
Caso não haja tempo hábil para lançar e homologar o resultado da licitação da coleta e transporte até abril, a prefeitura fará um novo contrato emergencial – em 2017, foram firmados dois, com a Cavo, empresa que presta o serviço em Curitiba desde os anos 1990. O material coletado é levado para o aterro da Estre Ambiental, em Fazenda Rio Grande, ao sul de Curitiba. Na prática, é a mesma empresa: em 2011, a Estre, de São Paulo, comprou a Cavo.
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Os serviços todos de limpeza urbana – que incluem os resíduos domiciliares, recicláveis e varrição de ruas – custaram cerca de R$ 238 milhões para o município em 2017. É o quarto mais alto, depois de saúde, educação e transporte público. Em contrapartida, foram arrecadados somente R$ 118,7 milhões com a taxa de coleta de lixo (TLC). Para 2018, o rombo não será tão grande, já que a Câmara Municipal aprovou a separação da TLC do IPTU. Antes, imóveis isentos também não pagavam pelo lixo que geravam – igrejas, associações, clubes, entre outros. A partir de agora, todos os proprietários de imóveis pagarão. Com isso, a previsão de arrecadação é de R$ 200 milhões.
Incentivos
Apesar de a mudança na TLC ser considerada justa, não é ela que vai dar conta dos custos crescentes da limpeza urbana. Segundo o economista Christian Luiz da Silva, professor do Programa de Planejamento e Governança Pública da UTFPR, um dos pontos fundamentais é aprimorar a logística. O modelo vigente em Curitiba depende, basicamente, de um único aterro para depósito dos resíduos, que fica a 48 quilômetros de distância dos pontos mais ao norte da capital.
Em 2016, a gestão do ex-prefeito Gustavo Fruet (PDT) anunciou que pretendia lançar duas concorrências internacionais para remodelar toda a gestão do lixo. Em uma delas, para limpeza, coleta e separação de resíduos, se previam pelo menos duas estações de transbordo, para receber os materiais e fazer a separação do que poderia ser reutilizado daquilo que precisa ser levado ao aterro. Na outra, seria escolhida uma empresa para cuidar do tratamento dos resíduos. A iniciativa estava baseada em um estudo feito pelo International Finance Corporation (IFC), um braço do Banco Mundial.
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“Algumas coisas não eram muito consistentes, mas havia pontos interessantes, como aumentar o número de transbordos, para diminuir a logística dos veículos”, observa Silva. O modelo usado atualmente, e que seria replicado na licitação por 60 meses, é de pagamento por tonelada transportada. “Hoje, para a contratada, quanto mais transportar, melhor, e ela nem precisa se preocupar com destino disso. Seriam necessárias ações para corresponsabilizar pelo volume de lixo enviado ao aterro”, observa.
Outro ponto que precisa ser trabalhado é o incentivo para o cidadão reduzir a quantidade de lixo que produz, diz o professor da UTFPR. “Mais do que uma política de educação ambiental como teve com a família Folha [lançada com o Lixo que não é Lixo, em 1988], hoje em dia as pessoas são muito sensíveis a políticas de incentivo econômico. Poderia ser com separação de latinhas, deposita em algum lugar e recebe alguns centavos. Mesmo que seja um valor simbólico, as próprias crianças, famílias, começam a enxergar o valor daquilo, e veem que esse tipo de coisa não é só um tipo de subemprego para a população invisível de Curitiba”, avalia.
R$ 1 bilhão é o valor do edital de licitação de coleta de lixo de Curitiba lançado pela prefeitura em agosto do ano passado
Para o vereador Goura (PDT), que questionou a licitação lançada em 2017, a prefeitura pode se dedicar a resolver o problema emergencial do lixo, mas respeitando os parâmetros indicados pelo TCE e também pelo Ministério Público – que informou que está acompanhando o tema. “Mas, no curtíssimo prazo, a prefeitura poderia atuar em outras frentes, para economizar com a geração de energia. A política municipal de recompostagem é uma delas, algo que estimule geradores de resíduos a adotar esse tipo de prática”, diz.
No começo de janeiro, a prefeitura de Florianópolis abriu as inscrições para o projeto Minhoca na Cabeça, para distribuir 500 minhocários para aproveitamento de resíduos orgânicos através da compostagem. O órgão informou que, com base na produção média diária de 1,6 quilo de resíduos orgânicos por família de quatro pessoas, os 500 colaboradores que aderirem ao projeto desviarão 292 toneladas de resíduos orgânicos por ano em Florianópolis, com economia direta de R$ 43 mil em transporte até o aterro sanitário e redução de 70% na emissão de carbono.
“Em uma conta pessimista você consegue reduzir em 30% a geração de lixo orgânico, que não vai para o aterro, que não precisa ser pago. A produção individual de adubo não é viável economicamente, mas, no coletivo, sim. E o principal ganho da administração pública é deixar de gastar, não o que vai gerar de receita”, observa Silva. Ele conta que enviou para publicação um artigo que mostra que o investimento de R$ 1 milhão em políticas de educação ambiental em um ano pode, no prazo de 30 anos, proporcionar uma economia de R$ 22 milhões com a reciclagem. “O que falta é pensar de forma diferente e a médio e longo prazo. Não na geração de receita, mas deixar de gastar. É isso que devemos fazer, em vários segmentos da administração pública”, acrescenta. O que ele lamenta é o retrocesso: o modelo que continua sendo utilizado é mais defasado do que o Consórcio Intermunicipal para Gestão de Resíduos Sólidos (Conresol) lançou em 2007, mas que não foi para frente por conta de diversos entraves jurídicos.
Prefeitura quer licitação de tratamento ainda neste ano
A despeito de todas as dificuldades para lançar um edital de coleta e transporte, a atual gestão tem a expectativa de que o Consórcio Intermunicipal para Gestão de Resíduos Sólidos (Conresol) lance, ainda neste ano, uma licitação para modernizar o tratamento do lixo, de forma a reduzir o montante depositado em aterro e reutilizar a maior parte do volume coletado, em tecnologia ainda a ser definida. “Estamos avaliando as possibilidades e precificando isso. A nossa meta, ousada, é que até abril tenhamos o desenho do edital pronto, para dar seguimento com as audiências públicas”, explica Edelcio Marques dos Reis, superintendente de Controle Ambiental da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMMA).
Ousadia, de fato, não falta às metas dos municípios. Pelos estudos do Conresol, em cinco anos os municípios da RMC conseguiriam reciclar e reutilizar quase a totalidade de resíduos domiciliares. Apenas 15% do volume produzido seria depositado no aterro. O restante seria reutilizado ou transformado em alguma forma de combustível. Já a economia seria grande, com a perspectiva de geração de receita no médio e longo prazo. Um desafio e tanto considerando que até o momento Curitiba sequer conseguiu lançar seu edital de coleta.
A modelagem da concorrência, se parceria-público privada, aberta a grupos estrangeiros ou consórcios, ainda está sendo estudada. A dificuldade, diz Reis, é o ineditismo do documento – ainda não há um modelo em funcionamento no Brasil. Algumas plantas que lançaram o sistema de combustível derivado de resíduo (CDR), por exemplo, ainda não conseguiram operar plenamente, por não conseguirem comercializar o insumo. Outro ponto a ser considerado, diz ele, é o licenciamento de plantas tecnológicas. “Precisamos ver o que é licenciável, porque uma estação de tratamento vai gerar impacto, vai envolver muitas variáveis, e por isso poderia levar muito tempo para ser feita. A intenção da gestão é fazer uma licitação e entregar um sistema funcionando”, ressalta.
Enquanto as dificuldades se impõem, uma ação que será lançada em breve, diz a prefeitura, é uma campanha de educação ambiental voltada para a redução da geração de lixo.
Greca ignorou sistema proposto pelo Banco Mundial
A demora em lançar uma licitação impediu que Curitiba implantasse o sistema sugerido pelo IFC, instituição parceira do Banco Mundial. O estudo ficou pronto só em junho de 2016, no fim do mandato de Gustavo Fruet. Quando Rafael Greca (PMN) venceu a eleição e iniciou as conversas para a transição, solicitou que não fosse lançado nenhum edital. Ao assumir, desconsiderou o levantamento e decidiu lançar primeiro um edital para o serviço essencial de coleta e transporte, deixando o tratamento para um segundo momento.
O contrato com o IFC custou R$ 5,2 milhões, dos quais a prefeitura pagaria 25% – o restante seria bancado pelas empresas que ganhassem as licitações do lixo. A gestão de Greca tenta se eximir desse pagamento. “O que eles entregaram não era licitável. O padrão de qualidade na cidade iria decair sensivelmente, porque o estudo estava baseado na redução de serviços, de 50% da malha varrida, de 50% na frequência de coleta, de 60% da coleta seletiva”. Procurado, o IFC afirmou que está em conversa com a prefeitura de Curitiba e que, até o momento, não tem novidades a informar sobre o caso.
Linha do tempo
Confira os principais eventos relacionados à questão do lixo em Curitiba:
1989 – Aterro sanitário do Caximba, ao sul de Curitiba, começa a ser utilizado.
2001 – Curitiba e outros 18 municípios da região metropolitana (RMC) criam o Consórcio Intermunicipal para Gestão de Resíduos Sólidos (Conresol). À época, o prefeito da capital era Cassio Taniguchi.
Janeiro de 2005 – Beto Richa assume a prefeitura de Curitiba.
Dezembro de 2007 – Consórcio lança a licitação para implantação do Sistema Integrado de Processamento e Aproveitamento de Resíduos (Sipar), com o objetivo de implantação de um processo industrial para reciclar, transformar em adubo e gerar energia a partir de 85% do lixo gerado.
Fevereiro de 2008 – Liminar suspende a licitação e inicia uma longa disputa judicial. Tribunal de Contas do Estado (TCE) também contesta o processo.
Dezembro de 2008 – Mandirituba aprova lei que proíbe a cidade receber lixo de outros municípios, inviabilizando aterro no local.
Novembro de 2009 – Prefeitura de Mandirituba publica decreto regulamentando a lei que autoriza o recebimento do lixo, mas desde que seja para uma usina de reciclagem.
Dezembro de 2009 – Depois de muitas idas e vindas, Conresol declara a Recipar como vencedora da licitação.
Março de 2010 – Tribunal de Justiça considera que licitação tem “irregularidades insanáveis” e anula o processo. Consórcio recorre da decisão. Luciano Ducci assume a prefeitura de Curitiba.
Agosto de 2010 – Sancionada a lei que cria a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que inova ao explicitar que o poder público, o setor empresarial e a comunidade como um todo são responsáveis pela efetividade das ações na área.
Novembro de 2010 – Depois de 21 anos de operação, o Aterro da Caximba é desativado oficialmente. Aterros credenciados, em Fazenda Rio Grande e Curitiba, passam a receber as 2,5 mil toneladas de lixo diárias.
Março de 2011 – A empresa paulista Estre Ambiental compra, por R$ 610 milhões, a Cavo Serviços de Saneamento, responsável pela coleta de lixo de Curitiba. O negócio dá à Estre a posição de maior gerenciadora de lixo do país.
Abril de 2012 – Prefeitura acata decisão do TCE e desclassifica as duas empresas que ficaram nas primeiras colocações da licitação. A comissão de licitação deve fazer uma nova classificação, mas o processo segue indefinido, por conta de outras duas ações judiciais.
Janeiro de 2013 – Gustavo Fruet assume a prefeitura.
Outubro de 2013 – Depois de meses de análises, Conresol decide enfim cancelar a licitação que se arrastava desde 2007.
Abril de 2015 - A prefeitura de Curitiba firma acordo com a International Finance Corporation (IFC), braço do Banco Mundial, que apresentaria proposta para remodelar o sistema de gestão de resíduos. O custo do estudo foi de US$ 1,94 milhão, do qual 25% seria de responsabilidade da prefeitura e o restante seria custeado por uma ou mais empresas escolhidas para prestar o serviço.
Junho de 2016 – Prefeitura anuncia novo modelo para gestão do lixo, com licitação internacional para escolha de empresas, estações de transbordo para separação preliminar do lixo com fins de reutilização e diminuição do custo de transporte, entre outras inovações.
Janeiro de 2017 – Rafael Greca assume a prefeitura. Meses antes, quando foi declarado vencedor da eleição, solicitou à prefeitura que não lançasse a licitação.
Agosto de 2017 – Prefeitura lança novo edital de licitação, com modelagem antiga, em que coleta e destinação é feita de forma tradicional, com caminhões percorrendo longas distâncias até um aterro.
Setembro de 2017 – TCE suspende licitação. Também tramita na 1ª Vara da Fazenda Pública uma ação popular contra a licitação, questionando a proibição de consórcios participarem do certame.
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